No capítulo anterior de A Estrela
do Tempo:
“Joseph, eu preciso te mostrar
uma coisinha.” “Uau!!!! O que é aquilo?” “É a estrela do tempo [...]as pessoas
que conseguirem enxergá-la podem fazer qualquer pedido que será realizado na hora.”
“E isso é verdade?” “Não custa acreditar [...]O que mais quer pra sua vida?”
“Eu quero ser o menino mais inteligente do mundo.” “Construí uma máquina do
tempo para poder voltar ao passado e desfazer essa grande burrada.” “Joseph,
você conseguiu!” “Adeus, meu caro amigo, eu volto pra te contar como foi.” “Não
era 21, era 27, dia 27 [...] nossa! Que besteira que eu fiz”
Capítulo 2:
Frankenstein.
– Não é possível, não é possível.
– Estava sentado olhando para aqueles exercícios, mas com o pensamento bem
distante. A sala era enorme e ficava ainda maior por só ser preenchida por mim
e Morcego.
– Tá achando ruim? – Morcego olhava
atentamente as questões enquanto pegava o seu estojo. – Imagine pra mim, toda
aula eu sou pego dormindo, aquele professor me odeia.
– Não é isso, Morcego... – Ele me
interrompeu.
– A Lari Come-Come me disse que
só aceitaria sair comigo de novo se eu tomasse jeito.
– Lari Come-Come? – Além de estar
nessa situação completamente louca, precisava que minha memória se lembrasse
exatamente dos eventos atuais.
– Sim, Joseph, a Lari Come-Come
disse que não iria me dar uma nova chance enquanto não melhorasse nos estudos.
– Você e ela estão juntos?
– Hã? Você que nos juntou!!! Na
boa, o que foi que aconteceu com você? – Morcego havia, finalmente, achado uma
caneta que parecia funcionar.
– Estava brincando, lógico que eu
lembro. – Onde será que a Lari Come-Come foi parar no futuro? Ela era uma
garota bem legal. Baixinha, calada, tinha ondinhas nos cabelos e sorria com os
olhos. Ganhou o apelido por passar a maior parte do tempo na cantina e de ser
temida por todos que estavam atrás dela na fila do lanche.
“Por favor, vocês poderiam me dar
seis coxinhas, dois risoles, um misto e um refrigerante diet, estou de dieta.”
Ela atraía a inveja das meninas,
pois comia, comia, comia e não engordava de jeito nenhum.
– Não conte nada pra ela. –
Morcego começou a responder as questões.
– Eu tenho mais com o que me
preocupar, Morcego. – Coloquei a apostila de lado e me espreguicei, viajar no
tempo era algo bem cansativo.
– Você não vai fazer?
– Isso daqui é muito fácil, respondo em segundos. – Ele
ainda não sabia que havia me tornado o “menino mais inteligente do mundo”.
– Sério? Você? Sr. Sabe Tudo, responda a primeira questão e
nos ajude, por favor.
– Já que você insiste. – Peguei a caneta que estava no meu
bolso e me concentrei. – Aqui é uma equação simples do segundo grau, é só pegar
isso daqui, é... essa aqui é um pouco difícil, mas a segunda questão... hum...
essa segunda complica um pouco na interpretação, mas a tercei... é melhor pular
pra quarta que é mais... vamos tentar fazer a quinta.
– Você não sabe nenhuma, Joseph.
– Não pode ser, eu sou o menino mais inteligente do mundo,
não é possível... – NOOOOSSA!!!! É possível!!! Eu ainda não vivi o dia da estrela
do tempo, logo eu não pedi a minha inteligência, significa que eu não mais a
tenho. Caramba!!! Será que tem como piorar!?
– Vocês têm vinte minutos ou tomarão uma suspensão. – O
zelador Gonzaga apareceu na porta e deu o recado de forma pouco educada. Havia
muito tempo que eu não o via. A última vez tinha sido num shopping, nos
lembramos da época em que temia seus gritos (essa época) e ficamos rindo de
como ele tinha envelhecido pouco, ainda apresentava uma ótima forma. Já estava
quase nos sessenta e se orgulhava em mostrar as definições nos braços.
– Menino mais inteligente do mundo, é melhor adiantar o
lado. – Peguei a carteira e coloquei ao lado do Morcego e comecei a copiar as
suas respostas.
{...}
Faltavam dois minutos quando
entregamos a lista de exercício na coordenação. Gonzaga estava ali com um
cronômetro na mão. Eu e Morcego fomos para casa pelo caminho que sempre
fazíamos, começava a perceber o lado positivo de reviver todos esses ótimos
momentos. O bate-papo descontraído, a falta de grandes responsabilidades, o ar
jovial de ser adolescente de novo, tudo pairava ao meu redor como uma aura
positiva da qual nem me lembrava mais.
– Morcego, preciso te contar
algo. – Estávamos parados em frente à minha casa.
– Pode ser depois, estou ansioso
pra chegar em casa e contar logo o que aconteceu para a Lari Come-Come, não
quero que saiba pelos fofoqueiros de lá da sala. – Pobre Morcego, não sabe que
os dois não ficarão juntos. Será que se eu adiantar o futuro ajuda? Será que o
hoje é melhor se soubermos o que vai
acontecer amanhã?
– É rápido, eu preciso...
– JOSEPH!!!!!!!!!! – Um berro
aterrorizante invadiu a minha espinha e arrepiou todos os pelos do meu corpo. –
ENTRA AGOOOOOORAAAAAA!!!!!!! – Não lembrava de como minha mãe tinha vigor
quando estava brava. Me virei amedrontado e vi aquela figura enraivada na
janela.
– Deixa pra depois, Morcego...
Morcego? – Ele já nem estava ali, corria mais rápido do que cachorro fugindo do
banho.
Entrei em casa e comecei a ouvir
todo o vocabulário da mamãe, de traz pra frente, de frente pra traz. Ela estava
furiosa por algo que eu ainda nem sabia.
– E por que você está chorando? –
Eu estava? Passei a mão no rosto e percebi que lágrimas saiam dos meus olhos.
Estava emocionado por vê-la jovem novamente. Ela continuava enfurecida,
enquanto toda a nostalgia daquela época invadia minha memória. Rompi a sessão
de esporro e dei um forte abraço nela.
– Eu estava morrendo de saudades.
– Falei deixando as lágrimas caírem. A coitada não entendeu nada, mas parou o
discurso.
– Você está bêbado? – Mamãe nunca
foi uma grande representante de afeto. Eu sabia que ela me amava, me amava de
um jeito bem peculiar.
– Desculpa. – Me desculpei do que
nem sabia.
– Tudo bem, tudo bem, mas leva
logo o almoço da dona Amelie, você já está mais do que atrasado.
– A dona Amelie está viva? –
Perguntei com os olhos arregalados. Um tapa teleguiado saiu da mão dela diretamente
no meu rosto.
– Está maluco menino?! Bate na
boca. – Bater na boca para minha mãe era como se tivéssemos usando o botão
“delete” na última frase dita.
“– Mãe, será que teremos o
especial Roberto Carlos?
– Bate na boca, menino!!!”
Ela me entregou o almoço e me fez
ir pra lá com um peso na consciência gigantesco. Normalmente, mamãe que leva o
almoço da dona Amelie, mas, por algum motivo que não me lembro, hoje essa é uma
missão minha. Nunca gostei muito de ir pra lá, é por que ela já está bem
velhinha e sua memória mostra sinais de péssimo funcionamento.
Coloquei a chave na porta e
entrei sorrateiramente. Dona Amelie não deixava que ninguém mexesse em sua
casa, por isso era decorada por teias e aranhas para todo o lado. Fui andando
suavemente, relembrando aquele lugar; a cristaleira que servia para guardar as
correspondências dos seus amigos que ainda moravam na cidade da luz, as cadeiras
antigas que guardavam braços curvados e corredor longo, cheio de quartos, que
dava acesso ao local onde ela, sozinha, vivia refletindo sobre o passado.
– Jojo – Assim ela me chamava. –,
você que veio hoje?
– Tudo bem, dona Amelie? – Até
onde me lembro, a casa tinha um cheiro estranho, não sabia se vinha dela, da
poeira acumulada ou da mobilha velha, mas tinha, não tem mais.
– Tudo sim. – Ela se levantou
para pegar o almoço.
– Não precisa, eu coloco pra
esquentar. – Meus pais haviam comprado um micro-ondas, era mais fácil para
gente e menos arriscado quando eu vinha, minha habilidade com fogão era
praticamente nula.
“Mãeeeee!!! A panela está preta e
tá saindo uma fumaça estranha, isso é normal?”
Esquentei a comida, arrumei a
mesa e a servi. Ela começou o seu falatório cotidiano. Passava tanto tempo
sozinha que não perdia a oportunidade de um bom bate-papo.
– Sua mãe está no trabalho?
– Não, não, ela está em casa, saiu
do trabalho no começo do ano.
– O que foi que aconteceu?
– Problemas com o chefe, felizmente
meu pai recebeu uma promoção, mas logo, logo outro trabalho aparece.
– Tem cada chefe que não dá pra
suportar. – Ela falava no intervalo das garfadas que dava no prato. – Essa
comida está muito boa, foi sua mãe que fez?
– Foi sim. – Falei sorrindo como
se o elogio fosse pra mim.
– Com que tempo? Sua mãe é muito
boazinha, além de trabalhar ainda se preocupa em me ajudar, ela é de Deus.
– É que ela já não está
trabalhando.
– Por que? O que foi que
aconteceu?...
E assim levamos a tarde toda, em
uma conversa simples que ia dando voltas sem sair do lugar. Engraçado, achava
extremamente chato ter que vir aqui, já até briguei com a mamãe por conta
disso, hoje não, adorei ficar com a dona Amelie e me arrependi de não ter feito
isso várias vezes no passado (que agora é presente.) Me despedi com um forte
abraço, ela até estranhou um pouco essa manifestção de carinho. É que num
futuro próximo, dona Amelie sofrerá um ataque cardíaco e minha mãe, ao trazer o
seu almoço, a encontrará deitada sem vida no chão da cozinha. Não sabia se a
veria de novo, então fica aqui meu abraço de despedida.
Entrei em casa e ninguém estava
lá, fiquei ainda com a imagem de um futuro sofrido para aquela jovem senhora.
Acabei me rendendo ao melhor remédio para os maus pensamentos; o sono...
{...}
– Alô, alô... – Acordei pegando
os óculos em cima da escrivaninha.
– Que desperdício de vida é esse,
Josh? – Uma voz animada falava rapidamente do outro lado da linha. – Eu já te
disse que dormir só de madrugada mesmo, quando não há nada melhor pra fazer.
– Anna, é você? – Desde que
“retornei”, era a primeira vez que a gente se falava.
– E quem mais seria, bobão?
– Não, não é isso. – Faz tempo
que ela não tinha esse nível de intimidade comigo. Crescemos ainda amigos, mas
a vida adulta nos afastou de tudo que mais gostávamos; bate-papo furado,
sábados de filmes, noites de batata-frita... Se tem algo que sempre me pareceu
necessário era a amizade dela e a rotina de “gente grande” tirou parte disso de
mim.
– E aí, preparado pra amanhã? –
Amanhã? Deus do céu! Eu bem que poderia ter um diário, isso me ajudaria tanto.
– Com certeza. – Não fazia ideia
do que ela estava falando. – E você?
– Sim, sim, já dei uma última
lida no roteiro, o professor Grego irá adorar. – Grego era o nosso professor de
teatro. Era excêntrico e tinha o ego enorme, evitava ao máximo ficar perto
dele.
– Vem cá – Meu cérebro já dava
sinais de bom funcionamento. -, você está falando da peça do Frankenstein? –
Diga que não! Diga que não! Diga que não!
– Lógico, Josh, do que mais eu
estaria falando? – Putz! Que azar é esse!!! Lembro que só aceitei fazer parte
da peça por que o par da Anna seria o Cícero Lente de Contato. Ela o achava
repugnante e me pediu, quase implorando, que eu fizesse o teste para o papel principal.
A verdade é que eu sou um péssimo ator, mas ele é muito pior. A peça sofreu um
boicote da turma de teatro, eles queriam interpretar Romeu & Julieta, mas o
professor Grego era fã de Frankenstein e prevaleceu a vontade dele. Motivos à
parte, não era necessário ressaltar que não me recordo de nenhuma parte da fala
da tal peça.
– O ensaio geral é que dia mesmo?
– Amanhã, Josh, ainda tá
dormindo? Você que me apareça amanhã sem saber a fala, eu te mato, nós lemos
isso inúmeras vezes. – Era outra expressão recorrente de Anna. O problema é
que, numa matemática básica, dentro da sua cabeça dez ameaças concretizavam um
fato e, assim como a tal fala, não sabia em que número estávamos.
– Que nada, está na ponta da
lingua. – Soltei um riso descontraído para parecer confiante. – Vou até dar uma
última treinada só para não perder o ritmo.
– Tudo bem, então nos falamos,
amanhã, ok?
– Ok.
Procurei em todo quarto e fui
achar o tal roteiro dentro da penúltima gaveta no meu guarda-roupa. Sentei na
cama e vi que minhas partes estavam grifadas e com algumas observações que eu
mesmo tinha feito. “Hum... 20:00h, acho que vou ter que abdicar do sono para
conseguir gravar tudo isso.” Mal tinha voltado para a vida de adolescente e já
estava desfrutando da arte milenar de não valorizar o descanso noturno... Que
saudade dessa vida.
“...avisatando-me, o
estrangeirose dirigiu a mim em inglês, embora com sotaque estranho...” “...por
fim, o dia nasceu triste e úmido descobrindo para meus olhos insones...” “...eu
aprecisava este cenário, embora o meu prazer sofresse a amargura...” “...nossas
conversas não se limitam sempre à sua própria história...”
Dia 22/10
A manhã chegou, todo esforço da
noite anterior seria recompensado (assim espero). Apesar de só ter alguns
flashes do passado na mente, consigo me lembrar de como foi emocionante me
apresentar na frente de toda a escola e de como a seletiva para conseguir o
papel foi difícil. Victor Frankestein, personagem principal, o rapaz que
desafiou Deus com a inteligência... acho que a escola estava tentando dar uma
dica de parte do meu futuro.
Fui andando para o colégio, dormi
mais do que deveria e menos do que precisava. Minha mãe me acordou aos berros e,
por conta do atraso, não consegui ver o meu pai. Fui comendo uma avermelhada
maçã no meio do caminho, foi a forma que ela encontrou para me desejar boa
sorte. Mamãe sempre usava frutas como algum tipo de demonstração de carinho.
“ – Mãe, eu sei que a senhora
ficou feliz por eu ter limpado toda a casa, mas não tenho como levar essa
melancia para a escola.”
– Preparado? – Anna apareceu
repentinamente. Fiquei estatelado vendo-a, não lembrava do quanto era bonita.
Seus cabelos azuis, há muito tempo eles não eram mais assim, suas curvas
adolescentes, a roupa sempre belamente desajustada. Meu queixo parecia ter tocado
o chão... como não me apaixonei antes?
– Josh? – Ela estalou os dedos na
frente dos meus olhos. – Ainda tá dormindo? Não temos tempo pra isso. – Ela
pegou minha mão e me puxou. – Temos que passar o texto antes do ensaio geral.
– Mas as primeiras aulas?
– Esquece, Josh, dê prioridade ao
que precisa de prioridade. – Mal sabia o que era prioridade pra mim.
Fomos para longe do pavilhão onde
ficavam as salas. Estávamos em frente a um prédio que era pouco aproveitado,
tinha um galpão onde coisas velhas ficavam guardadas. Anna mal sabia que
usaremos esse espaço para a escolha mais importante das nossas vidas. Chegamos
lá, mas logo percebemos que não éramos os únicos, podia-se ouvir uma conversa,
no mínimo, estranha:
– Pega com carinho...isso...isso...cuidado,
assim não pode...aí, matei o seu desejo? – Eu e Anna nos olhamos com
estranheza. Infelizmente, aquela voz era bem conhecida.
– Que baixaria, Morcego!!!! – Ela
apareceu quase fazendo-o morrer do coração. O coitado estava segurando o
Baseado, seu gatinho de estimação, enquanto a Lari Come-Come fazia cafuné na
cabeça do bichano.
– Olá, Larissa. – Anna estava
completamente sem graça. – Olha, Josh, era o Baseado.
– Eu sei, você pensou que fosse o
quê? – Nós adorávamos nos colocar em situações embaraçosas.
– Eu...o que eu achei?... Eu...
– A AULA JÁ COMEÇOU! – A figura
imponente do zelador Gonzaga apareceu fazendo sombra em todos nós. – Para sala,
bonitões e bonitonas.
– Fala, Gonzaga. – Anna deu um
beijo em seu rosto. – Precisamos ficar aqui para treinar um pouco da peça que
vai ter mais tarde, você vai lá me ver?
– Que horas vai ser? – Ela
conseguia amolecer facilmente o coração dele.
– Às onze horas.
– Não dá, é na hora do “momento
saúde” na rádio, eu não perco nenhum programa. – Gonzaga foi saindo. – Vocês
têm uma aula pra treinar o que quer que seja, no segundo horário quero todo
mundo dentro da sala.
– Valeu, Gonzaguinha. – Ele
odiava ser chamado assim e Anna insistia em chamá-lo assim. Vai entender.
Ficamos ali passando o texto por um bom tempo. Lari Come-Come, Morcego e
Baseado serviam como platéia. Anna parecia uma atriz profissional, cheia de
trejeitos, de variações, de performances. Já eu... Eu estava mais para um ator
de Malhação, parecia que tinha tomado um chá de gesso, mal me movia e parte da
fala que eu havia gravado, durante a noite, já tinha sumido da minha cabeça.
– Precisamos que vocês deem uma
nota pra gente. – Anna segurou na minha mão.
– Pode ser individual? – Eles
estavam escrevendo as notas no caderno.
– Pode ser. – Seria mais justo.
Lari Come-Come deu 9,0 para Anna e 3,0 pra mim. Morcego deu 8,0 pra Anna e 1,5
pra mim. Baseado deu 10,0 pra Anna e um miado chocho pra mim.
– Eu estou tão ruim assim? –
Perguntei cabisbaixo.
– Ruim? – Morcego veio me
consolar. – Você precisa melhorar bastante pra ficar ruim.
– O que aconteceu, Josh? Você
estava tão bem na semana passada.
– Acho que o tempo passou e eu
nem percebi. – Nesse momento o sinal tocou e, de fato, aquilo indicava que o
tempo não só tinha passado, como já tinha acabado.
– Temos que ir pra sala. – Anna
falou desanimada. – Seja o que Deus quiser.
– Amém...
{...}
Entramos no teatro e todos já
estavam ali. O professor Grego falava gesticulando bastante, molhando todos ao
redor e dando os últimos retoques para quem ainda iria concorrer às últimas
vagas. Não lembrava que essa peça havia sido tão concorrida, pra minha sorte o
meu papel já estava garantido, lembrava do Cícero Lente de Contato em nenhum
dos ensaios e por conta diss...
– O que é que ele está fazendo
aqui? – Falei ao chegar perto do professor. Era justamente o Cícero sentado no
palco. Minha memória ia de mal a pior.
– Me apaixonei pelos olhos dele,
vocês irão disputar pelo papel de Victor Frankenstein. – Ele falava sem achar
que precisava de um argumento mais convincente.
– Anna, estamos ferrados. – Não
tinha a menor possibilidade dele ser pior do que eu, a menos que ele tenha um
AVC na hora do teste.
– Calma, calma, podemos pensar
num plano. – Ficamos em silêncio matutando qual seria esse genial plano.
– Não fiquem parados, vamos
definir logo o papel de vocês, já temos a Elizabeth e o monstro. – Era o papel
de Anna e de um outro aluno, respectivamente. – Vão lá para o palco, vá lá
também, Anna e Anderson, quero que façam a cena em que ele entra no quarto, vê
a esposa morta e conversa com o monstro. – Meu Deus, eu nem lembrava que tinha
essa cena. – E quero que no fim vocês beijem o “cadaver” – O sinal de aspas com
as mãos foi para deixar longe qualquer mau agouro. Agora eu estava enrascado de
vez, além de não lembrar a fala, estar mais nervoso do que cego em sauna, tinha
a missão de beijar Anna na frente de todo mundo. Sou muito tímido pra isso.
– Boa sorte. – Anna passou por
mim e foi para a sua posição. Anderson vestia sua roupa de Frankenstein. Era
algo tão improvisado que parecia o monstro da cabeça de papelão, nada
assustador, na verdade, o que mais me assustava ali era a minha derrota
iminente. Fui o primeiro, dei umas engasgadas iniciais, mas até enrolei bem.
Improvisei o que não sabia e tentava me locomover por todo o palco, Anna me
guiava com os olhos, ajudou um pouco, mas não muito. Considero essa
apresentação um semidesastre, o gran
finale poderia fechar com chave de ouro ou com chave de m****.
– Vai lá, rapaz! – Gritava o
Grego. – Beija ela. – Fui me aproximando lentamente de Anna. Ela estava
deitada, seus olhos fechados, os lábios vermelhos eram extremamente
convidativos. O problema todo é que não lembrava de tê-la beijado anteriormente
e não podia fazer nada que fosse diferente da outra vez. Será que as coisas
foram exatamente assim? Pensava em tudo isso enquanto olhava aquela cena. Grego
gritava que nem um maluco enquanto eu decidia o que era o certo a fazer. Fui
chegando perto, perto, bem perto, a minha boca estava quase tocando na dela,
bem perto mesmo e...
– MIAU!!!!!!!! MIAU!!!!!!
– Um gato? O que é que um gato
está fazendo aqui dentro? – Baseado invadiu o teatro atraindo a atenção de
todos.
– Desculpa, desculpa. – Morcego
entrou correndo atrás dele.
– Thiago, suma com esse gato
agora!!!!! – Gonzaga entrou em seguida.
– Todos saiam do meu teatro, eu estou ocupadíssimo!!! – Choveu
cuspe para todos os lados. – Vamos logo com esse beijo.
– De novo? – Respondi conseguindo
uma saída para aquilo tudo.
– Vocês já se beijaram?
– Beijo mais ardente não há. –
Anna se levantou.
– Ótimo, ótimo, vamos testar o
Cícero agora. – Ela sorriu pra mim, acho que também estava desconfortável com a
situação. – Todos em seus lugares, vamos lá, ação! – O segundo teste foi feito,
ele estava tão ruim quanto eu, parecia estar drogado ou algo do tipo. Aquilo me
deu esperança, até que chegou a fatídica hora do beijo. Meu coração apertou,
acho que isso é ciúme, a última vez que eu havia sentido algo parecido foi
quando Morcego deixou de ir ao meu aniversário para comemorar o do Baseado
(sim, nós nascemos no mesmo dia). Cícero Lente de Contato, com seus malditos
olhos artificiais, tascou um beijo aspirador de pó em Anna, conseguia sentir a
sua falta de respiração dela daqui (ou seria a minha mesmo?), nem queria
imaginar o quanto ela o xingava por dentro.
- Ótimo, ótimo. – Grego batia
palmas. Todos desciam do palco lentamente. Anna ainda se recuperava da
experiência de ser aspirada. – Os dois aqui na frente. – O professor nos chamou
enquanto analisava suas anotações.
– Josh. – Ela limpava toda baba
que estava ao redor da sua boca. – Se não for você, eu não irei fazer, nem
pensar. – Era tudo que precisava: mais um peso de responsabilidade sobre as
minhas costas. Parei ao lado de Cícero enquanto o professor Grego vinha em
nossa direção.
Anderson Shon é escritor e professor. Lançou o livro Um Poeta Crônico no final de 2013 e, desde lá, já apareceu em coletâneas de poesia e de contos, já deu oficinas e é figura certa nos diversos saraus de Salvador. É apaixonado por quadrinhos, filmes esquisitos e músicas que ninguém ousa ouvir. Prepara seu segundo para o segundo semestre de 2016 e evita comer alface no almoço para não precisar dormir pela tarde.