Um dia estava na loja da Livraria Cultura, em Salvador, e vi, na seção de literatura estrangeira, uma linda capa verde com nuanças em preto, com um chamativo título: A Fome de Íbus – Livro do Dentes de Sabre (agora em ebook Kindle, por R$9,18 na Amazon.com). Imediatamente fiquei curioso, começando pelo fato de que o autor, Albarus Andreos, não é estrangeiro, mas brasileiro. A moça que me atendeu, uma baixinha simpática, exibiu certa estranheza, levantando as sobrancelhas. “Tem certeza?”, perguntou ela. O nome é estrangeiro. “Tenho”, respondi. “Mas eu li esse livro e ele é muito bom”. “Agradeço o comentário, mas ainda assim tenho certeza, já que o autor sou eu”, sorri.
Imagina se não fiquei contente com a observação da moça! Mas aí mora um detalhe muito caprichoso. A impressão de que brasileiros não são capazes de escrever boa literatura fantástica. A conversa com ela (eu não queria ir embora), demorou algum tempo ainda, com trocas de impressões, comigo praticamente entrevistando a moça, para saber mais impressões sobre a leitura que ela havia desfrutado. Para começar, que o fato do livro ser mostrado como literatura estrangeira (e assim está até hoje na Livraria Cultura, vai saber porquê) refletiu na decisão dela de ler a obra.
Ainda havia a capa, que havia gostado, e a contracapa, com uma descrição sucinta da obra, que a impulsionou na compra. Mas o que mais influenciou, foi ter dado uma folheada e verificado, numa página ou duas, uma leitura muito agradável e bem feita, com legítima fantasia medieval, com guerreiros, elfos e um certo tom sombrio, advindo da magia que tocava a obra do início ao fim. E havia ainda a diagramação bem cuidada e uma história muito bem escrita. Ela citou ainda mais coisas, mas confesso não lembrar, pois nesse momento eu estava flutuando tão alto que sua voz estava muito distante para ser audível. É assim que gosto sempre de pensar num livro que escrevo.
Desde que comecei a escrever A Fome de Íbus sempre tive a intenção de escrever um bom livro. Quem acompanha minhas resenhas vê o quanto sou implacável e minucioso. Apegado à detalhes e à boa técnica, que muitas vezes destroem certas narrativas que podem até guardar ótimas histórias. Era um livro feito para meu próprio gosto, do jeito que gostaria de ter lido um dia, quando pequeno. Mas não resisti de pôr um pouco de mim, adulto, no texto, com certos excessos que só são permitidos numa idade mais madura, como violência e sexo (de levezinho, pois ainda desejava que meu livro fosse lido por garotos). E assim fiz toda a obra, que por conveniência de minha primeira editora, acabou sendo dividida em quatro livros, para ficar economicamente viável para o freguês.
Não é verdade, portanto, que tenha escrito uma quadrilogia. Isso veio só para podermos vender livros menores, que assustariam menos o pretenso leitor. Mal imaginávamos, na época, que um dia George R. R. Martin quebraria esse paradigma e faria tijolos e mil páginas em sua premiada série As Crônicas de Gelo e Fogo, e que eles seriam consumidos mesmo assim, como pão fresco. Mas, bem, eu não Martin, embora nossas obras sejam bem similares no que se refere ao cuidado narrativo. Bebemos das mesmas fontes, seja por causa de Tolkien, seja devido a importância que damos à boa escrita. Isso soa ainda meio estranho, confesso, mas o conceito de “Boa Escrita” vem do fato de que normalmente se considera que livros do mainstream, escritos por autores como Dostoievski, Garcia Marques ou Guimarães Rosa, são “melhor escritos”, porque esses autores tinham antes um apego à língua e à técnica de transmitir o que queriam com precisão, através de palavras e frases muito bem escolhidas e combinadas com conteúdo genuíno e relevante.
Mas falando nisso, meu livro foi escrito numa época em que não conhecia ainda o mestre barbudo das Crônicas de Gelo e Fogo. Enquanto a obra dele trata muito mais de intrigas e bastidores de uma guerra, a minha é muito mais tolkeniana, com os famosos elfos e orcs saltando uns sobre os outros com espadas afiadas. Certo que botei ali uma certa pimenta e assim, A Fome de Íbus, adquiriu um tom que faz dela uma fantasia mais adulta, mais sinistra, com a bruxaria comendo a torto e a direito, com o personagem Golfhary, por exemplo, o Senhor da Guerra, o temido lanceiro kurv que se finge de mendigo, que fura os próprios olhos para dar um jeito de se meter junto à comitiva do herói, para engendrar seu mal. Portanto, sem me dar conta, fiz a primeira dark fantasy nacional do século XXI.
Gosto da boa história, do bom traço, da descrição cuidada e pertinente, das conversas de fundo, onde detalhes importantes às vezes emergem para o primeiro plano para aumentar o caldo e constituir uma boa trama. Assim foi que Karizem, um guerreiro habilidoso e destemido, foi se meter na sombria cidadela arcana, conhecida como Tull Saitanes, logo após ter retornado da guerra, onde passou longos nove invernos, lutando e testando seu braço no cabo de uma espada. Karizem talvez procurasse um pouco de sossego, talvez só quisesse retomar o que deixara para trás. Existia uma vazio em seu peito que não havia sido preenchido por ouro ou glórias. Mas não... só isso não daria uma boa história. Precisava me dedicar a uma boa trama. Karizem teve que sair de novo para o mundo.
Então inventei Tellor, o mago que odeia mais que tudo tomar banho. Acabou presenteado com um anel de poderes ocultos, que despertaram nele um passado que tinha decidido esquecer. Quem, dono de imenso poder, decide deixar tudo para trás para se enfurnar numa cabana caindo aos pedaços numa floresta? Por quê? Essa magia que ele havia abandonado há muito retorna com o novo vínculo mágico em seu dedo e ele abnega a si próprio em prol de ajudar Karizem, o Dentes de Sabre. Sim, Karizem não terá um segundo sequer de sossego. Ele se meteu em terreno muito escorregadio quando decidiu deixar a pacata Ith e agora terá que seguir adiante se quiser manter sua sanidade. A procura por seu "coração roubado" passa a ser vital.
Já, Haskor, é um rapaz solitário, mal começou a ver os primeiro fios de barba em seu queixo, mas é forte e destemido como um verdadeiro guerreiro do Norte. Exímio cavaleiro, acaba sendo um reforço inusitado na trupe que Karizem não queria formar. Ele teve sonhos, e eles incluíam o Dentes de Sabre. Coisas ocultas que pertencem ao reino da magia, algo que Golfhary dos kurv busca e que poderá dar imenso poder ao Senhor da Guerra. Haskor tem um fogo dentro de si que não poderia jamais ser contido por uma aldeia pequena como Ith. Após tanto tempo invejando Karizem, decide que chegou a vez dele viver seu próprio tempo.
A ligação com Tolkien se faz com a inclusão de um elfo e um anão na história. É o tom mágico que deve permear uma boa aventura de alta fantasia. Elementos que contribuem com novos conflitos, novos pontos de vista e direções na história. O que poderia ser apenas uma fuga, para Karizem, uma fuga de sua família, de seu passado que no fundo desejava retomar, uma fuga de Ith, mostra-se o início de uma nova aventura. Karizem busca seu coração, que as visões de uma dragão dizem que foi roubado. O personagem é um daqueles que são tão carismáticos que nos apegamos no primeiro momento. Suas contradições o fazem bastante profundo, mas sua trajetória de heroi é bem clara, e ele a desempenhará a contento. E quem diz isso sou eu, o autor, o cara que o criou!
Gosto muito de batalhas, e foi em outro ícone da literatura que fui buscar inspiração. Tolkien não me bastava. Não serão raras as alusões às paredes de escudos, às lanças preparadas para o combate, às entranhas esparramadas na frente de batalha. Aí entra Bernard Cornwell, mestre do romance histórico, para me aconselhar. Sempre fui fã de carteirinha dele e é em sua narrativa que bebo, com orgulho, para ilustrar minhas cenas de guerra, com homens matando homens com ódio nos olhos e o coração cheio de medo. Sim, meus heróis tem medo. Não são invulneráveis, e muitas vezes chegam próximos demais da morte. No caso, o herói que precisa da ajuda que só pode vir de uma cidade de magos necromantes, que Tellor conhece e teme, de longa data.
O texto nos leva então às clássicas masmorras, os dungeons tão queridos dos jogadores de RPG, que contém um perigo a cada esquina e prostra os herois com o peso de labirintos de pedra impenetráveis. Não há para onde ir senão para frente. E criaturas monstruosas dominam os calabouços sob Tull Saitanes, um local para onde os homens não deveriam ir: as Tumbas de Tetrogolls. Perceberam os nomes? Gosto de nomes de fantasia, fortes, sinistros, despertando por vezes um mal muito próximo de sua inspiração. As mazelas por que passa Karizem e seu grupo o levam para um submundo de medo e assombrações, e também para o próximo volume da saga, O Livro da Escuridão.
Não poupo a magia, como já disse antes. Livros de fantasia tem que usar e abusar do que lhes dá razão de ser. Meto Karizem e os outros caras em masmorras recheadas dos mais sombrios e nefastos vilões, armados do fogo arcano e da transmutação de formas, que mudam lindas donzelas em monstruosidades sombrias das florestas e charcos. Faço com que os próprios vilões, na verdade, tenham que mostrar que valem mais que sua própria ambição, tornando-os aliados sem que queiram, para seu ódio infinito. É assim que vejo vilões, cheios de raiva, de descontrole, ou ao contrário, de um controle doentio e dissimulado.
Fiz A Fome de Íbus (todos os quatro livros), para leitores. Para jovens e adultos que gostem de uma boa escrita, com conteúdo e bons momentos dentro da literatura, e não só para consumidores de histórias fantásticas. A eles também, claro, dedico minha obra. O que seria um bom livro de fantasia sem o frenesi das fugas, do despencar das alturas e da retomada dos voos nas asas de um dragão? O que seria da história se não houvesse fadas e um bruxo sedento por almas para manter-se mau, por mais um mileniozinho? Para você, leitor, fiz A Fome de Íbus. Espero que goste!