Capítulo 7 – O Pedido Final
Parte 1
Com a morte do zelador Gonzaga, tudo estava de ponta a cabeça. A direção havia suspendido as aulas, adiado as provas e decretado três dias de luto. O problema é que amanhã é o dia da estrela do tempo e sem acesso à escola ficará impossível refazer a cena. Salvar o gato do Morcego fez um rombo temporal que respingou na vida de outras pessoas, até vitimando quem não tinha nada a ver com o fato; o pobre zelador Gonzaga. Às vezes somos heróis por não fazermos algo que todo mundo acha que deveríamos fazer, sacrificar o nosso sono por alguma culpa futura é como manter uma capa invísivel nas nossas costas. Eu fiz exatamente o contrário disso e, de qualquer forma, estou carregando uma culpa, mas dessa vez ela está fantasiada de uma enorme corrente com uma bola de ferro amarrada presa ao tornozelo. O corpo foi velado na escola mesmo, seus amigos, familiares, pessoas próximas e mais distantes estavam ali. Uma chuva fina cobria o céu, foi esse clima que se fez presente para darmos nosso último adeus ao Gonzaga. Anna não acreditava no que estava acontecendo, não sei o que passava em sua cabeça, mas olhava aquela cena como se fosse algo de outro mundo. Será que a morte é tão surpreendente assim?
– Quer um pouco de água? – Levei Anna pra minha casa, não queria deixá-la sozinha com tantos pensamentos ruins na cabeça.
– Era o meu pressentimento, algo tentanva me antecipar essa tragédia, eu não dei ouvidos.
– Não se culpe, existem outros culpados, eles já devem estar martirizados. – Usei o plural pra fazê-la não desconfiar que o verdadeiro culpado era eu.
– O que nós fazemos depois que alguém querido se vai? Somente convivemos sem aquela pessoa?
– Tem outra alternativa?
– Eu era a única aluna que só tinha coisas boas pra falar sobre ele. – Ela estava desolada.
– Isso tira um pouco a culpa de você, deveria ser um consolo.
– Não. – Anna se levantou e foi até a janela. – Não, seria se eu não tivesse o machucado.
– Você o machucou? – A relação dos dois era bem peculiar, é verdade, quem via de fora não entendia muito bem o que era bronca e o que era afago, mas eu, convivendo bastante com os dois, sabia que qualquer palavra que saia de suas bocas eram temperadas de carinho. Gonzaga tentava ser um bom conselheiro pra Anna, ela ouvia pouco, mas fazia questão de escutá-lo. Eles se gostavam da maneira deles.
– Quando eu saí ontem, no dia da competição, lembra?
– Lembro sim.
– Gonzaga tentou me parar, disse que odiava quando eu não dava importância para coisas que eram importantes. Me ameaçou, disse que me daria uma advertência, me tratou como uma criancinha, eu odiei aquilo, falei a ele que não era pra se portar como alguém da coordenação já que era um simples zelador, nada mais que isso.
– Caramba, Anna, não é o tipo de coisa que se diz. – Parabéns, Joseph, ótima maneira de tirar o peso da consciência dela.
– Eu sei, Josh, eu sei. – Percebi que tinha falado besteira.
– Calma, calminha, isso não a faz culpada da morte dele.
– Culpada não, faz algo pior, me joga um arrependimento que não tem volta, não tenho como me desculpar, minhas últimas palavras para quem me quis bem foram essas e eu não tenho mais oportunidade de pedir perdão. – Era algo bem triste mesmo, mas eu não ia dizer isso. Não tenho um bom repertório de conselhos acalantadores, por isso pedi uma sugestão antes que falasse mais besteira.
– O que posso fazer por você? – Precisava ser mais útil.
– Você tem como me colocar numa máquina do tempo? Preciso corrigir as coisas.
– Acredite. – Tirei ela da janela. – Isso não muda nada. – Coloquei-a sentada na cama. – E eu sou ruim em matemática, lembra?
– Lembro? Mas poderíamos fazer uma juntos, você me disse que poderíamos fazer tudo juntos. – Ela se levantou novamente. – Eu poderia voltar naquele momento e refazê-lo.
– E quem te garante que tudo mudaria pra melhor?
– E quem me garante que não? – Aquela discussão não iria chegar a lugar nenhum.
– Anna, não pense em nada desse tipo. – Nesse momento é até perigoso ela saber da estrela do tempo, mas isso será necessário em um futuro próximo... será que ela já sabe? – Com certeza há algo que possamos fazer, algo que não traria maiores problemas.
– Algo que possamos fazer? – Ela ficou olhando para o próprio cérebro, procurava algo que parecia estar escondido ali. – Sim, podemos fazer, me segue, Josh.
– Nós vamos pra onde?
– Não pergunta, só me segue. – Eu a obedeci, estava começando a ficar muito bom nisso.
{...}
– O que estamos fazendo aqui na escola? Não, Anna, não pule o muro, Anna!!! – Sussurrava mais deixava claro que a minha intenção era estar gritando. – Anna, desce, desce, nós não podemos... eu não vou pular, Anna, não vou pular.
– Pronto, Josh, pode pular. – Ela já estava na parte de dentro. Que raiva, eu nem sabia o que íamos fazer aqui, mas já estava contrariado. Subi com dificuldade e pulei completamente destrambelhado. Pensei numa máxima de Anna. Ela sempre tinha a mesma frase para situações como essas.
– Faça algo sem medo e sempre dará certo. – Ouvi sua voz se distanciando enquanto sua frase predileta percorria o ar.
– O que estamos fazendo aqui?
– Preciso pegar algo. – Anna ia andando sem nenhum medo de ser vista. A escola estava bem vazia, o céu alaranjado mostrava os últimos resquícios do sol. De longe, vimos que a porta do quarto onde Gonzaga ficava estava fechada. Não era um obstáculo para ela, mas quis convencê-la que seria uma roubada entrar lá. Sem sucesso, é verdade. Anna forçou um pouco a porta e a abriu. Não havia mais nada lá. O quartinho, antes cheio de tranqueiras, agora via-se completamente vazio.
– Já tiraram tudo. – Os seus olhos passeavam tristemente sobre os móveis que já não estavam mais ali. Ela começou a tatear as paredes como uma espiã procurando pistas.
– É como tratamos a morte, em minutos tudo vira uma vaga lembrança.
– Lembranças? – Anna tirou um azulejo do lugar e pegou um caderninho que estava escondido num recipiente.
– Lembranças. – Era o nome que estava na capa do caderno. – O que é isso?
– O caderno de poesia do Gonzaga. – Ela se sentou no chão encostando na parede. – Ele só mostrava pra mim, tinha vergonha de escrever, mas adorava quando eu as elogiava.
– Posso ler?
– Não, era um segredo nosso. – Parecia que Anna segurava uma pedra preciosa. – Quero que continue assim. – Suas mãos folheavam cada parte e pareciam sugar o sentimento que ali havia. De repente, ela parou, seus olhos encheram de lágrimas e sua voz emudeceu.
– Anna? Anna? – Nenhuma resposta vinha. – Anna?
– Essa poesia está datada de ontem, ele deve ter feito após ouvir aquelas palavras horríveis que falei. – Peguei o livro lentamente, sabia que não estava autorizado a fazer aquilo, mas queria saber por que Anna achava que aquela poesia a tinha como alvo.
Sem Medo
A vida é simples
Nós que confundimos ela
Quando olhamos da janela
Amamos o sol
Mas fechamos a cortina
E a chuva
Bela, bem-vinda, querida
Mas é só chover
E abrimos a sombrinha
O melhor do doce
É o açucar
Mas dizemos que engorda
E o vento que vem da porta?
Fechamos
E nos importamos
Com algo que não importa
Minha jovem, menina
O mundo é muito pequeno
Para ser curto
E muito curto
Para ser pequeno
Pare de olhar pra dentro
Há um mundo à sua espera
Querendo você por perto
Viva a vida cada dia
E obrigado por me ensinar
Quando fazemos algo sem medo
Sempre dará certo.
Anna se levantou abruptamente, limpava as lágrimas na manga da camisa.
– Vamos, Josh, já é hora do dia de hoje acabar.
– E o de amanhã começar. – Completei.
– O que tem de tão especial amanhã?
– Posso te fazer um pedido, Anna?
– Não, me faça amanhã, é melhor. – Ela foi andando, parecia ainda sem direção, eu continuei seguindo-a, era o que eu sabia fazer de melhor, mas dessa vez havia um rumo desenhando na minha mente; a estrela do tempo, era o que o amanhã nos reservava, era o único caminho que me restava tomar.
Anderson Shon é escritor e professor. Lançou o livro Um Poeta Crônico no final de 2013 e, desde lá, já apareceu em coletâneas de poesia e de contos, já deu oficinas e é figura certa nos diversos saraus de Salvador. É apaixonado por quadrinhos, filmes esquisitos e músicas que ninguém ousa ouvir. Prepara seu segundo para o segundo semestre de 2016 e evita comer alface no almoço para não precisar dormir pela tarde.
RSS/Feed - Receba automaticamente todos os artigos deste blog. Clique aqui para assinar nosso feed. O serviço é totalmente gratuito.
Com a morte do zelador Gonzaga, tudo estava de ponta a cabeça. A direção havia suspendido as aulas, adiado as provas e decretado três dias de luto. O problema é que amanhã é o dia da estrela do tempo e sem acesso à escola ficará impossível refazer a cena. Salvar o gato do Morcego fez um rombo temporal que respingou na vida de outras pessoas, até vitimando quem não tinha nada a ver com o fato; o pobre zelador Gonzaga. Às vezes somos heróis por não fazermos algo que todo mundo acha que deveríamos fazer, sacrificar o nosso sono por alguma culpa futura é como manter uma capa invísivel nas nossas costas. Eu fiz exatamente o contrário disso e, de qualquer forma, estou carregando uma culpa, mas dessa vez ela está fantasiada de uma enorme corrente com uma bola de ferro amarrada presa ao tornozelo. O corpo foi velado na escola mesmo, seus amigos, familiares, pessoas próximas e mais distantes estavam ali. Uma chuva fina cobria o céu, foi esse clima que se fez presente para darmos nosso último adeus ao Gonzaga. Anna não acreditava no que estava acontecendo, não sei o que passava em sua cabeça, mas olhava aquela cena como se fosse algo de outro mundo. Será que a morte é tão surpreendente assim?
– Quer um pouco de água? – Levei Anna pra minha casa, não queria deixá-la sozinha com tantos pensamentos ruins na cabeça.
– Era o meu pressentimento, algo tentanva me antecipar essa tragédia, eu não dei ouvidos.
– Não se culpe, existem outros culpados, eles já devem estar martirizados. – Usei o plural pra fazê-la não desconfiar que o verdadeiro culpado era eu.
– O que nós fazemos depois que alguém querido se vai? Somente convivemos sem aquela pessoa?
– Tem outra alternativa?
– Eu era a única aluna que só tinha coisas boas pra falar sobre ele. – Ela estava desolada.
– Isso tira um pouco a culpa de você, deveria ser um consolo.
– Não. – Anna se levantou e foi até a janela. – Não, seria se eu não tivesse o machucado.
– Você o machucou? – A relação dos dois era bem peculiar, é verdade, quem via de fora não entendia muito bem o que era bronca e o que era afago, mas eu, convivendo bastante com os dois, sabia que qualquer palavra que saia de suas bocas eram temperadas de carinho. Gonzaga tentava ser um bom conselheiro pra Anna, ela ouvia pouco, mas fazia questão de escutá-lo. Eles se gostavam da maneira deles.
– Quando eu saí ontem, no dia da competição, lembra?
– Lembro sim.
– Gonzaga tentou me parar, disse que odiava quando eu não dava importância para coisas que eram importantes. Me ameaçou, disse que me daria uma advertência, me tratou como uma criancinha, eu odiei aquilo, falei a ele que não era pra se portar como alguém da coordenação já que era um simples zelador, nada mais que isso.
– Caramba, Anna, não é o tipo de coisa que se diz. – Parabéns, Joseph, ótima maneira de tirar o peso da consciência dela.
– Eu sei, Josh, eu sei. – Percebi que tinha falado besteira.
– Calma, calminha, isso não a faz culpada da morte dele.
– Culpada não, faz algo pior, me joga um arrependimento que não tem volta, não tenho como me desculpar, minhas últimas palavras para quem me quis bem foram essas e eu não tenho mais oportunidade de pedir perdão. – Era algo bem triste mesmo, mas eu não ia dizer isso. Não tenho um bom repertório de conselhos acalantadores, por isso pedi uma sugestão antes que falasse mais besteira.
– O que posso fazer por você? – Precisava ser mais útil.
– Você tem como me colocar numa máquina do tempo? Preciso corrigir as coisas.
– Acredite. – Tirei ela da janela. – Isso não muda nada. – Coloquei-a sentada na cama. – E eu sou ruim em matemática, lembra?
– Lembro? Mas poderíamos fazer uma juntos, você me disse que poderíamos fazer tudo juntos. – Ela se levantou novamente. – Eu poderia voltar naquele momento e refazê-lo.
– E quem te garante que tudo mudaria pra melhor?
– E quem me garante que não? – Aquela discussão não iria chegar a lugar nenhum.
– Anna, não pense em nada desse tipo. – Nesse momento é até perigoso ela saber da estrela do tempo, mas isso será necessário em um futuro próximo... será que ela já sabe? – Com certeza há algo que possamos fazer, algo que não traria maiores problemas.
– Algo que possamos fazer? – Ela ficou olhando para o próprio cérebro, procurava algo que parecia estar escondido ali. – Sim, podemos fazer, me segue, Josh.
– Nós vamos pra onde?
– Não pergunta, só me segue. – Eu a obedeci, estava começando a ficar muito bom nisso.
{...}
– O que estamos fazendo aqui na escola? Não, Anna, não pule o muro, Anna!!! – Sussurrava mais deixava claro que a minha intenção era estar gritando. – Anna, desce, desce, nós não podemos... eu não vou pular, Anna, não vou pular.
– Pronto, Josh, pode pular. – Ela já estava na parte de dentro. Que raiva, eu nem sabia o que íamos fazer aqui, mas já estava contrariado. Subi com dificuldade e pulei completamente destrambelhado. Pensei numa máxima de Anna. Ela sempre tinha a mesma frase para situações como essas.
– Faça algo sem medo e sempre dará certo. – Ouvi sua voz se distanciando enquanto sua frase predileta percorria o ar.
– O que estamos fazendo aqui?
– Preciso pegar algo. – Anna ia andando sem nenhum medo de ser vista. A escola estava bem vazia, o céu alaranjado mostrava os últimos resquícios do sol. De longe, vimos que a porta do quarto onde Gonzaga ficava estava fechada. Não era um obstáculo para ela, mas quis convencê-la que seria uma roubada entrar lá. Sem sucesso, é verdade. Anna forçou um pouco a porta e a abriu. Não havia mais nada lá. O quartinho, antes cheio de tranqueiras, agora via-se completamente vazio.
– Já tiraram tudo. – Os seus olhos passeavam tristemente sobre os móveis que já não estavam mais ali. Ela começou a tatear as paredes como uma espiã procurando pistas.
– É como tratamos a morte, em minutos tudo vira uma vaga lembrança.
– Lembranças? – Anna tirou um azulejo do lugar e pegou um caderninho que estava escondido num recipiente.
– Lembranças. – Era o nome que estava na capa do caderno. – O que é isso?
– O caderno de poesia do Gonzaga. – Ela se sentou no chão encostando na parede. – Ele só mostrava pra mim, tinha vergonha de escrever, mas adorava quando eu as elogiava.
– Posso ler?
– Não, era um segredo nosso. – Parecia que Anna segurava uma pedra preciosa. – Quero que continue assim. – Suas mãos folheavam cada parte e pareciam sugar o sentimento que ali havia. De repente, ela parou, seus olhos encheram de lágrimas e sua voz emudeceu.
– Anna? Anna? – Nenhuma resposta vinha. – Anna?
– Essa poesia está datada de ontem, ele deve ter feito após ouvir aquelas palavras horríveis que falei. – Peguei o livro lentamente, sabia que não estava autorizado a fazer aquilo, mas queria saber por que Anna achava que aquela poesia a tinha como alvo.
Sem Medo
A vida é simples
Nós que confundimos ela
Quando olhamos da janela
Amamos o sol
Mas fechamos a cortina
E a chuva
Bela, bem-vinda, querida
Mas é só chover
E abrimos a sombrinha
O melhor do doce
É o açucar
Mas dizemos que engorda
E o vento que vem da porta?
Fechamos
E nos importamos
Com algo que não importa
Minha jovem, menina
O mundo é muito pequeno
Para ser curto
E muito curto
Para ser pequeno
Pare de olhar pra dentro
Há um mundo à sua espera
Querendo você por perto
Viva a vida cada dia
E obrigado por me ensinar
Quando fazemos algo sem medo
Sempre dará certo.
Anna se levantou abruptamente, limpava as lágrimas na manga da camisa.
– Vamos, Josh, já é hora do dia de hoje acabar.
– E o de amanhã começar. – Completei.
– O que tem de tão especial amanhã?
– Posso te fazer um pedido, Anna?
– Não, me faça amanhã, é melhor. – Ela foi andando, parecia ainda sem direção, eu continuei seguindo-a, era o que eu sabia fazer de melhor, mas dessa vez havia um rumo desenhando na minha mente; a estrela do tempo, era o que o amanhã nos reservava, era o único caminho que me restava tomar.
RSS/Feed - Receba automaticamente todos os artigos deste blog. Clique aqui para assinar nosso feed. O serviço é totalmente gratuito.