Estrela do Tempo
Capítulo 4 – O tempo não gosta de se perder.
- Coragem, coragem, coragem... – Repetia esse mantra com uma velocidade musical. Luana Fernanda estava ali, sozinha, esperando somente uma pessoa corajosa que pudesse tirá-la daquela amarga solidão. Enchi meu peito de ar e fui em sua direção. Meu foco era único, o que me deixou completamente distraído com o que estava ao meu redor. Essa distração me impediu de ver a bela garota que atravessava justamente na hora em que a coragem me guiava. Ela carregava um montante de livros e uma bolsa alçada no ombro. Nos esbarramos com uma força além do normal. Seus livros foram para um lado, a bolsa para o outro, meu ímpeto de cavalheiro fez com que eu a segurasse, mas isso não impediu que tivéssemos que nos apoiar com os joelhos no chão. Falando assim, pareceu um desastre, mas não foi. Aquela cena toda havia passado na minha cabeça em câmera lenta, percebia como o destino estava sendo amigo me colocando em contato com uma menina que não planejei, que nem imaginei. Os mais ajuizados dizem que planejar é pros fracos, acabo de concordar com todos eles. Ela me olhou de forma sublime, seus cabelos esvoaçantes estavam se ajeitando de volta, enquanto as mãos doces tateavam o chão procurando os livros caídos. Tinha a obrigação de ajudá-la, e assim o fiz.
- Desculpa, eu sou um pouco desastrado.
- Sem problema.
- Vem cá – Percebi que ela já ia saindo. -, você quer sair comigo? - Era a minha grande oportunidade.
- Você tá maluco, fedelho?! – Nem sabia o meu nome e já me ofendia daquele jeito. É... acho que o destino tirou a semana para me trolar. Me restava tentar a sorte com a Luana Fernan...
- Não!?!? não...não... – Morcego realmente acertou ao dizer que ela estava solteira... solteira de um homem, pois uma menina havia acabado de sentar em seu colo e trocar um selinho bem apaixonado.
- Eu mato o Morcego, eu mato o Morcego...
{...}
- Já preparou o seu vestido, Morcego? – Falei enquanto saiamos da escola. Mais um dia aula havia passado e eu ia lembrando de como tinha esquecido de tudo. Era como se estivesse vivendo uma segunda vida, as memórias de outrora não estavam mais na minha mente. Isso pode significar um péssimo sinal, mas não queria pensar nisso agora, afinal, ainda tenho que arranjar uma boa desculpa para não ir naquele maldito encontro “à três”.
- Tecnicamente, você nem tentou, logo, nem tomou um fora.
- Eu fui rejeitado por uma geek e uma bipolar, o que o faz imaginar que uma lésbica iria me querer?
- Realmente, entre você e outra mulher, eu também preferiria a outra mulher.
- Morcego, eu te odeio! – Essa frase sintetizava o meu arrependimento de ter acreditado naquela lista idiota ou de ter ouvido, alguma vez na vida, os seus conselhos.
“ – Cara, ela não te quer, azar o dela, você acha que ela vai encontrar alguém com tão pouca masculinidade em qualquer canto?”
- E que horas nós vamos sair? – Parecia que Morcego ainda não tinha entendido qual era o grande impasse de tudo aquilo.
- Morcego! – Segurei firme no ombro dele. - Eu não vou! E o motivo é bastante óbvio, eu não vou ficar de vela de vocês dois, não tenho a menor vontade disso!!!!
- E se eu prometer não beijar a Lari...
- Cala a boca, Morcego, cala a boca. – Fomos andando até a saída da escola.
- Rapazes! – Um grito vinha de longe. – Rapazes! – Não sabíamos de onde exatamente vinha, mas dava para reconhecer que era a voz de Anna. Ficamos parados esperando ela se aproximar.
- Péssima notícia. – Ela respirou fundo. – O Cícero teve uma infecção no olho e não poderá ir com a gente. – Obrigado, destino, desculpas aceitas.
- Péssima? – Morcego olhou pra mim. – Péssima, Joseph?
- Péssima, sim, péssima. – Havia um riso maroto no canto da minha boca. Inventamos uma história para Anna sobre os insucessos das minhas tentativas. Ela sorriu, pareceu ter gostado da sequência de coincidências e de isso ter aberto a possibilidade do encontro ainda estar de pé.
- Então nós ainda podemos ir. – Foi o que ela deduziu.
- Com certeza. – Morcego fez questão de fechar logo os últimos detalhes. E assim foi feito. - 17:00 horas, em frente ao Shopping. - Anna saiu correndo, apesar de não ser uma mulher comum, ainda reservava o hábito de demorar bastante pra se arrumar.
- Ainda preciso usar um vestido, Joseph?
- Vou quebrar o seu galho desta vez, Morcego.
{...}
Horário marcado, pontualidade inglesa, incrivelmente todos estavam no Shopping, haviam chegado quase ao mesmo tempo (menos Lari Come-Come e Morcego, eles sim chegaram ao mesmo tempo.) Os dois formavam um casal bem bonito. Ela com seus vestidos de Tinker Bell, olhar apertadinho, parecia sorrir com a alma. Adorava estar na companhia dos amigos dele, era a hora que ele a tratava como uma princesa, sei lá o porquê. Morcego caprichou no visual, talvez estivesse “muito” pra ocasião, colocou uma das camisas sociais do pai (os dois tinham quase o mesmo tamanho), penteou os cabelos para trás e não mexeu em nenhum fio de barba, apesar de pouco e falhada, era intocável. Eu nunca liguei muito pro visual, botava a primeira camisa que via pela frente e meus óculos. O único tempo que perdia no banheiro era limpando-os, eles tinham que estar limpos, bem limpos, vai que encontro alguém na rua e não consigo reconhecê-lo? Anna, essa era quase uma consultora de moda... moda não, desculpa, estilo, ela sempre me corrige quando eu troco os dois. Usava um vestido azul para combinar com o seu cabelo, ele era cheio de estrelinhas, seu corpo parecia o céu, a galáxia e eu, astronauta desbravador, queria entrar no seu coração e fincar minha bandeira. “Existe vida no coração de Anna.” Seria a primeira mensagem para o povo da Terra. Anna estava linda, linda de cair o queixo. Consegui segurar meu encantamento, não queria parecer atirado.
- Que vestido lindo, Anna. – Lari Come-Come adorava as roupas que ela usava.
- Obrigado, o seu também é. - Elas continuaram a troca de afagos enquanto eu e o Morcego ríamos das duas. Chegamos ao Borghetti, a melhor comida mexicana de todo o bairro. Afastei a cadeira pra Anna, Morcego fez o mesmo para Lari, estávamos brincando de ser “gentleman”, nos faltava somente o terno e a flor pendurada próximo ao coração. Eu estava achando graça daquilo, mas Morcego levava muito a sério, parecia que aquela tarde/noite seria determinante para o futuro dos dois (ou era um jeito de se livrar do esporro esperado por mais uma advertência). Pedimos o de sempre, uma porção de nachos que vinha com carne moída apimentada, um molho picante e algumas folhas de alface, para alegria de Morcego, pois era o que ele se limitava a comer. A bebida era a de sempre; refrigerante de limão, todos fomos convencidos na aula de ciência que esse é o melhor tipo de refrigerante, pois não contém corante. Na verdade, a professora Vanessa nos disse para pararmos de beber, como ela percebeu que ninguém seguiria o seu conselho, preferiu aconselhar algo mais factível. Comida boa acaba rápido, quanto mais acompanhada de ótimas conversas e de risadas aos montes. A última porção foi bem disputada, mas quem venceu a briga foi Lari, ela ainda estava com uma cara de quem precisava comer o México inteiro, mas não tínhamos grana pra isso.
- Podemos pedir a conta? - Sugeri.
- Eu ainda tenho fome. - Lari procurava alguma coisa barata no cardápio.
- Acho melhor sairmos e comprarmos algo na lanchonete, vai sair mais em conta. - Anna não tinha problema em assumir os problemas com dinheiro, afinal somos adolescentes. - Eu não posso gastar muito, meu pai me deu um telescópio e eu jurei que ia pagá-lo.
- Anna, não jure nada, ninguém mais confia nos seus juramentos.
- Sou obrigado a concordar com o Joseph. - Eu e Morcego formávamos uma boa irmandade.
“- Eu juro, Josh, pode colocar o meu nome nesse trabalho, eu sei apresentar algo, eu juro, se der algum problema eu falo com o professor, eu juro...
- Zero para a equipe do Joseph por colocar uma integrante que achou que Soro Caseiro é o nome de quem tem HIV...”
- Você gosta de astromonia, astrologia, dessas coisas? - Às vezes, Lari parecia fã de Anna.
- Adoro, tenho pesquisado sobre isso cada vez mais, tem ótimos sites...
- PARCERIA!!! Ô PARCERIA!!!! - Um grito saiu da boca de Morcego, ninguém entendeu por que ele fez isso.
- Tá maluco, Morcego? Você bebeu refrigerante e tá bêbado!!!!
- Eu tô chamando o garçom pra pedir a conta.
- E você acha que ele gostaria de ser chamado assim?
- Aposto que sim.
- Aposto que não.
- Quem perder paga a conta do outro? - Anna sugeriu, ela curte ver umas faíscas saindo do circo.
- APOSTADO! - Falamos ao mesmo tempo.
- Boa noite, jovens, no que posso ajudar?
- Primeiro – Tomei a palavra. -, o senhor gosta de ser chamado de Parceria? É o jeito indicado de chamar os garçons?
- Se é o jeito certo... hum... não sei, mas que se eu gosto? Sim. - Ele apontou para o crachá “Parceria Santos Machado Alencar”. Nós seguramos o riso, era algo muito inusitado pra ser verdade. Pedimos a conta e pagamos, quer dizer, Morcego ficou isento, a sorte estava ao seu lado.
{…}
- Eu ainda estou com fome. - Lari tinha uma expressão de tristeza nos olhos.
- Nós sabemos, Lari, vamos lá na tal lanchonete.
- Vocês podem ir, eu e o Josh temos que comprar algo.
- Temos? - Anna queria ficar sozinha comigo? Era isso mesmo? As coisas estão finalmente indo para o caminho esperado.
- Temos sim, Josh. - Ela me puxou pelo braço. - Nos encontramos aqui mesmo daqui a uma hora, ok? - O olhar malicioso de Lari e Morcego mostravam o objetivo daquela separação.
- Eles mereciam ficar um pouco à sós, não é?
- Sim, sim, e nós também. - A resposta saiu completamente involuntária. Anna me olhou e ficou corada, não esperava que aquilo saísse de mim. Eu também não. Ela me disse que realmente precisava comprar algo, uma jaqueta. Era contraditório, pois tinha acabado de dizer sobre a tal economia que faria para pagar o telescópio, na verdade, era o que ela jurava que ia fazer e seus juramentos são menos confiáveis do que promessa de político. Anna entrou numa loja e pediu para provar vários modelos, tamanhos, cores... sempre pedia minha opinião, mas como a frase era a mesma “está ótima em você” ela parou de achar que aquilo fosse verdade. Mas era, não é culpa minha se ela fica linda com qualquer roupa e, principalmente, com todas aquelas jaquetas que pareciam ter sido feitas sobre encomenda. Por fim, ela escolheu a que eu disse “uau! O cara que fez essa tinha a sua foto na escrivaninha” aí sim Anna viu firmeza na minha opinião. Na verdade, era a que ela queria levar mesmo, eu só dei um empurrãozinho.
- Olha, Josh – Estávamos voltando para o local combinado. -, uma cabine de fotos, eu preciso registrar minha jaqueta. - Mais uma vez senti meu braço sendo puxado. Ela me jogou dentro da cabine e começou a fazer várias caretas. Fui na onda; língua pra fora, bochecha inflada, ela me escondendo atrás de sua bela jaqueta, milhares de poses possíveis. Uma foto em especial me fez sorrir; nos abraçamos e nossas mãos se tocaram sem querer, Anna não tirou a dela e eu também não, ali despertou algo, tenho certeza que sim, percebi o silêncio que invadiu o seu riso e ela me olhou diferente.
- Belas fotos. - Fomos vendo no caminho. - Ele deu até o negativo para revelarmos depois.
- Guarde o negativo. - A jaqueta dela tinha milhões de bolsos. - Depois nós vemos isso.
- Posso ficar com todas? - Não era um pedido comum.
- Hum... só se você... - Morcego e Lari já estavam no local combinado. Avistamos eles e nos aproximamos. Pelo sorriso dos quatro, aquela noite havia sido bem sucedida e agradável.
{…}
- Boa noite, Anna. - Digitei a última mensagem após uma longa conversa noturna pelo whatsapp. Apesar de temos passado a noite juntos, ainda havia risadas engatilhadas para mais essa ocasião. É muito bom ter Anna por perto, mas tudo que é bom acaba e eu precisava dormir, o sono me pedia.
Acordei como uma flecha, tinha a sensação de que acabara de deitar na cama. Meu corpo cansado denunciou algo de errado; o horário. Deus do céu!!!! Irei perder a primeira aula. Saí correndo, estranhei minha mãe não ter me acordado e nem estar em casa. “Será que algo aconteceu?” Não havia tempo para pensar nisso, tinha que correr para a escola. Peguei a reta que fazia sempre, estava calor, apesar do tempo ter adormecido bastante frio. Consegui avistar que o portão principal ainda estava aberto, pra minha sorte. Eu sou do tipo de aluno que odeia se atrasar, diferente dos dois sentados no banco ao lado da entrada, eles aproveitavam que a proibição de se beijar só funcionava daquele portão para dentro, fora dele não se implicava essa regra. De qualquer jeito, perderiam aula, eu queria ter essa coragem, é o tipo de coisa que Anna vive me dizendo para fazer, mas eu... “ANNA!!!! Anna e o Cícero!!! São os dois, aquele cabelo azul... Deus do céu, eu estraguei o tempo, o que foi que eu fiz?” Anna e Cícero se atracavam em um beijo ardente e apaixonado, pareciam um só, a distância era impossível dizer com exatidão de quem era determinada perna, braço, lábios... Isso não aconteceu no passado, não mesmo. De repente, eles se separam e ela percebeu que eu estou observando-a.
- Oi Josh, a aula já começou, quer ficar pra assistir?
- NÃÃÃÃÃOOOOOOO!!!!! - Acordei assustado. - Pesadelo, pesadelo, foi um pesadelo. - Olhei pro relógio e ainda estava longe de amanhecer. - Deus, me lembre de nunca mais viajar no tempo, ele não gosta de brincadeira, não gosta de perder tempo, ou melhor, não gosta de se perder. Boa noite.
Anderson Shon é escritor e professor. Lançou o livro Um Poeta Crônico no final
de 2013 e, desde lá, já apareceu em coletâneas de poesia e de contos, já deu
oficinas e é figura certa nos diversos saraus de Salvador. É apaixonado por
quadrinhos, filmes esquisitos e músicas que ninguém ousa ouvir. Prepara seu
segundo para o segundo semestre de 2016 e evita comer alface no almoço para não
precisar dormir pela tarde.