“Uma vez a cada século, quando a lua incidir sobre as marcas na tumba, ele se levantará...”. Não, isso não tem nada a ver com As Mentiras de Locke Lamora (Editora Arqueiro, 2014), a não ser pelo fato de que, como na profecia acima, de vez em quando surge um livro de fantasia tão melhor que o status quo reinante, que realmente parece um presente cabalístico. E, seguindo o mesmo raciocínio, surge a esperança que mais um grande gênio da literatura fantástica possa estar despontando. O norte-americano Scott Lynch com seus longos cabelos de elfo, chega para mostrar como um franzino órfão da fictícia cidade de Camorr, pode se tornar uma lenda!
Para começar a ambientação, deixamos as frias pradarias nevadas de sotaque anglo-saxão, tão comuns à literatura de fantasia, para nos imiscuirmos em uma cidade-estado formada por um arquipélago, com evidente influência italiana nos nomes das localidades e pessoas. Mas não um italiano de verdade, guardando mais a sonoridade das palavras do que vocábulos reais. É um mundo inventado, com três luas no céu, para não deixar dúvidas sobre sua natureza. E há ainda alguns toques de magia e alquimia, quando vemos que a luz usada pelas pessoas durante a noite vem de globos alquímicos, há animais marinhos inventados e há torres e pontes de Vidrantigo sobre canais, construídas por uma raça antiga, conhecida apenas como Ancestres, da qual não temos muitas referências.
Dá para identificar as pessoas vestidas com trajes renascentistas, com seus chapéus engraçados, as mangas bufantes e os vestidos cheios de camadas. Os prédios são de alvenaria, alguns altos, com vários andares, as ruas são cheias de sujeira e dejetos e eles usam floretes e adagas como armas e não há qualquer referência à pólvora. Pronto, situados assim, no tempo e no espaço, vamos conhecer o tal órfão, que chega ao Morro das Sombras, onde o Aliciador, seu garrista (um vigarista experiente), o recebe e dias depois já tem de se desfazer dele, depois de uma série de dores de cabeça que o menino lhe arranja. É com um humor sutil, sempre presente, que vamos então acompanhando esse garoto hiperativo, emburrado, um vigarista nato, com a dom de arranjar problemas onde quer que ponha os pés.
A história vai e volta continuamente, alternando-se entre a infância do pequenino Locke e o tempo em que ele, já adulto, está executando um golpe com sua trupe de ladrões, batizada de Nobres Vigaristas. Vamos conhecendo cuidadosamente cada um dos seus companheiros, como se encontraram e como conviveram, até adquirirem a confiança que irmãos possuem uns nos outros. Os Nobres Vigaristas são uma famiglia, nos mesmo moldes das velhas casas mafiosas, todas reunidas sob a afeição e égide violenta do Capa Barsavi, que não permite que uma só mosca voe em sua cidade sem sua autorização. Além dos amigos, conhecemos os burgueses e a aristocracia, o modus operandi das gangues, da polícia e da cidade de Camorr, de uma forma magistralmente bem contada, que liga todas as pontas e conduz uma narrativa digna de um mestre.
Na fase do Locke criança, como disse, o Aliciador acaba “vendendo” o menino, seu pezon, pois senão viria a ter de matá-lo e contabilizar o prejuízo. Para se ter uma ideia, ainda com seis anos, Locke já havia tocado fogo num bar e roubado a bolsa de um casaca amarela, como são chamados os policiais, o que infringe a Paz Secreta, que permite a convivência harmônica entre a Lei e o Submundo, com uma boa cola de corrupção. Como o Aliciador tem que prestar contas de seus subordinados ao chefão de Camorr, o Capa Barsavi, ou ele mata o menino ou se livra dele de alguma outra forma. A perda de alguns cobres não agrada ao Aliciador, que acaba deixando o garoto por conta de um pobre sacerdote de Perelandro, que na verdade não é outra coisa senão mais um golpista da fauna local.
A deliciosa narrativa, cheia de chistes, detalhadamente contada, nos leva a conhecer o responsável pela “formação” de Locke no que ele viria a se tornar mais adiante. O padre Correntes, que lhe ensina a obediência às regras e cada um dos segredos de como ser um talentoso ladrão, um vigarista inigualável e um trapaceiro ímpar, ao ponto de Locke um dia vir a ser conhecido como O Espinho, numa alusão a sua capacidade de se meter na carne da sociedade e lhe causar as aflições advindas de suas atividades, sem nunca ser pego ou sequer identificado. Engraçado é que essa imagem é inchada com mentiras, como o fato de se descrever o Espinho como um exímio espadachim, sendo que Locke sequer sabe pegar numa espada. O embuste é tudo para um vigarista.
As descrições dos golpes são o ponto forte do livro. Cada detalhe é pensado, planejado e executado pelos talentos de cada um dos especialistas do bando. Há os irmãos Sanza, Calo e Galdo, inseparáveis e paus para toda obra, há o pequeno Pulga, um mãos-leves, um menino pouco mais velho do que Locke era quando chegou até o templo de Perelandro, e há Jean Tannen, um gordo amigo de todos os momentos, exímio na contabilidade e ótimo com os punhos. Cada um zela pelo outro com a própria vida, cada um possui talentos e aptidões especiais, duramente adestradas, desde as línguas dos povos ao redor de Camorr, incluindo seus sotaques, até as mais requintadas habilidades na cozinha, na moda, na fabricação de disfarces e no manuseio de uma adaga. Tudo que pode auxiliar em um golpe é treinado à exaustão, desde criancinha.
É impressionante como o autor consegue nos passar esse sentimento de união entre os membros da gangue. Cada personagem é único, otimamente planejado e transbordante de carisma. E há ainda um singelo mistério que sempre aparece em pistas, aqui e ali. Um amor desfeito ou inacessível. Não dá para saber ainda. Uma incógnita. Uma misteriosa personagem da qual não temos quase nada para comentar: Sabeta. Brindes são oferecidos aos amigos ausentes e sempre se serve um cálice a ela, mesmo estando presente apenas nas recordações deles. Dá até uma apreensão. Será que ela está morta? Quase nada é dito mas sabe-se que teve sua importância para o grupo, desde menina, desde o tempo do padre Correntes. Um mistério que os próximos livros prometem revelar, mas a maneira como Scott Lynch insere esses momentos é com amargura e nostalgia.
Parte dessa simpatia, que temos por estes ladrões, se deve a maneira idealizada com que a história nos é contada. Afinal, quem poderia se afeiçoar a marginais? Qualquer um, se a maneira de contar fosse a adotada por Lynch, onde apenas os detalhes pitorescos são revelados. O golpe a que somos apresentados no livro, realizado pela gangue de Locke Lamora é contra gente rica, então fica uma coisa de “síndrome de Robin Hood”, como se roubar de ricos fosse menos mau. A polícia é corrupta, outro ponto a favor dos bandidos; o único que rouba de gente comum é Pulga, mas nesses momentos não há detalhes, ficando só no en passant. Eles são todos educados, falam várias línguas, são refinados, comem pratos complicados, mas todos vieram da miséria, o que “justifica” que possam ludibriar e prejudicar os outros. Atos violentos são praticados só pelas gangues rivais, então fica a sensação de que os Nobres Vigaristas são como “anjos vingadores do bem”, de alguma forma.
E para coroar, há o surgimento do real vilão da história: o Rei Cinza. Mas e o Capa Barsavi? Bem, ele é implacável, gosta de desmembrar os inimigos e não hesita em matar mulheres e crianças, quando precisa, mas como todo Chefão napolitano, é bonachão e afaga seus pezons como um pai austero. Barsavi não é, portanto o vilão. É só um engodo para atrair nossa atenção, um coadjuvante, enquanto ainda não conhecemos tudo a que o Rei Cinza veio.
Daí para frente o livro muda um pouco de andamento. A ação parece se intensificar. Personagens que havíamos começado a amar nos são tirados sem a mínima relutância, mostrando que G. R. R. Martin fez escola na sua técnica de foder sem piedade com suas criações. O Rei Cinza tem planos para Locke Lamora, e o magérrimo anti-herói não tem segredos para o Falcoeiro, um Mago-Servidor, um feiticeiro que trabalha para o Rei Cinza. Um pouco mais de magia é então introduzida na história, que é muito fraca nos elementos fantásticos, no máximo uma low fantasy.
O Falcoeiro é o Darth Vader que faltava para a trama. Um capanga terrível e sanguinário, um assassino frio, alguém que não pode ser morto, pois se for, toda a guilda de magos-servidores virá atrás do responsável, e sua família inteira será passada a fio de espada. É muito interessante como até nisso, Scott Lynch foi beber nas tradições italianas das vendetas e do processo de unificação da Itália, com todo o sangue e as chacinas que transformaram as cidades-estado italianas em “mares de sangue” (ops... spoiler do próximo volume? Pois esse é exatamente o título).
O Rei Cinza já entra causando. A maneira como os filhos do Capa são tratados, e depois, o confronto que tem com ele, pessoalmente, são emblemáticos. Vemos que estamos diante de um dos vilões mais filhos da puta da literatura fantástica. Ele tem algo da crueza de Glokta, dos romances de Joe Abercrombie. É um homem violento, inexorável, rancoroso, cheio até as tampas do desejo de vingança, quase um lunático que alcança a chance de se vingar do mundo. O escritor sabe como fazê-lo assim, pintando-o com as cores certas, mostrando o caminho que toma em suas decisões e os detalhes escabrosos que utiliza para se afirmar como o novo Capa. O Capa Raza, que daí por diante vai infernizar Locke e os seus. Não dá para imaginar como ele vai conseguir se livrar dessa sina. Locke está fodido!
Ah, sim, o livro tem muito palavrão. É o estilo de Scott Lynch de embarcar na onda italianizada de sua obra. Palavrões, violência explícita, o vil metal, ladroagem, pobreza e sangue no zóio.
O final do livro deixou um pouco a desejar quanto a identidade do Rei Cinza/ Capa Raza. Acho que Lynch poderia tê-lo introduzido mais cedo, como alguém comum na trama que no final se revelasse o vilão que agia às escondidas. Assim como aconteceu com o Aranha (muito bem feito). Deixou passar essa oportunidade de criar mais uma reviravolta, mas há outras pequenas falhas que acabaram por comprometer um tiquinho só a beleza da coisa toda. Há os fechos finais, com tudo sempre dando certo para Locke. Não que haja algum Deus Ex-Machina, não. Mas o papinho de Locke, sempre convencendo os demais personagens acaba sendo um pouco só forçado.
O confronto entre Locke e o Falcoeiro, no final é muito bom. Desejávamos ardentemente que o filho da mãe levasse o troco pelas atrocidades que cometeu, e Lynch não nos decepciona. Há a catarse por todos os seus pecados, assim como ocorre com o Capa Raza, embora ache que ficou tudo certinho demais. Talvez o autor não devesse ter deixado tudo tão fechadinho. De certa forma, destoa um pouco do tom italiano adotado durante todo o texto. Mas nada que faça com que As Mentiras de Locke Lamora deixe de ser um dos melhores livros que li nos últimos tempos, capiche?