O Olho do Mundo - Robert Jordan


Existe um tipo de literatura de fantasia que a mim parece a “legítima” fantasia. Claro que não há como desqualificar qualquer outra que fale de temas fantásticos, com elfos, dragões e espadas mágicas. George R. R. Martin é o melhor escritor de fantasia do mundo, concordo; Patrick Rothfuss é genial, não ouso discutir; Joe Abercrombie é um narrador impecável, verdade; Bernhard Hennen é revigorante, sim, mas... Robert Jordan me trouxe de volta cada instante mágico que já pude um dia desfrutar com J. R. R. Tolkien. O Olho do Mundo (Editora Intrínseca, 2013), primeiro volume da imensa série A Roda do Tempo, é meu novo “amigo desde criancinha”.

Esse livro tem absolutamente todos os itens que fazem da fantasia uma paixão mundial. E estou falando de alta fantasia. Nada de cautela ou mera insinuação por aqui. A magia é feita de bolas de fogo mortais, os inimigos são bestas peludas de chifres de bode retorcidos, as espadas são heranças de guerreiros ancestrais e as paisagens são recheadas de catacumbas e torres em ruínas, contendo tesouros, guardados por abominações. Dungeons & Dragons, caros amigos, mas escrito por um autor absolutamente ciente do que é a boa literatura. Depois desse livro, se você achava que fantasia era um texto mal escrito voltado para jovens debiloides e nerds, sua opinião vai mudar para sempre.

Uau! Comecei bem, enchendo a bola de Robert Jordan, sem medo de ser feliz. Portanto já posso falar do que não gostei. Simples: não há bom livro que resista a uma versão mal feita. Sim, porque a tradução e adaptação para uma nova língua, nada mais é que uma versão do original. E aqui a Intrínseca pecou feio. A tradução foi feita por Fábio Fernandes, um tradutor de longa data que já publicou um livro de algum relevo pela Editora Fantasy e tem nome no meio fantástico. Não dá para entender, portanto, como é que se enrola tanto em algumas frases, como complica passagens com uma redação sofrível, inverte a melhor ordem das palavras e despreza uma pontuação mais acurada, deixando alguns parágrafos meio que jogados a própria sorte, e o leitor que se vire para entender.

Mas tirando tradução e a revisão (que também não se importou com a má redação do tradutor), você vai se render ao mundo criado por Jordan. Já na introdução, somos apresentados ao Dragão, um ente poderosíssimo que acaba por cair frente a um outro ente sinistro, de imenso poder arcano, inicialmente identificado apenas como o Tenebroso. Vemos um massacre perpetrado pelas forças escuras do mundo e somos jogados num diálogo que nos deixa a mercê de avatares do caos, com o poder de destruir existências inteiras. Nesse início descobrimos que o mundo já foi destruído, e sabendo que isso já se repetiu inúmeras vezes, e a Roda do Tempo sempre recomeçará o ciclo, e a destruição jamais poderá ser evitada. Caramba! Arrepiei... Simplesmente, começando uma série de catorze livros, já sabemos que, lá no final, tudo vai pro beleleu! O que é isso gente?!

Robert Jordan recorre muito ao clichê, mas sempre ao seu favor. Rand al’Thor, por exemplo, é um rapaz tranquilo que esconde uma origem incomum. O velho chavão do predestinado, que se descobre adotado, criado por um pastor de ovelhas, mas que na verdade é o herdeiro de um imenso poder, seja lá qual for. E com ele estão Mat e Perrin, outros dois rapazes de Dois Rios, como é conhecido seu vilarejo, que parecem possuir alguma ligação com um tempo antigo, com o sangue de reis que desafiaram o poder das trevas, quando Dois Rios era conhecido como Manetheren.

Esses três rapazes, mais Egwene, uma jovem aprendiz de curandeira, são tirados de sua vila pacata após um ataque de Trollocs (os orcs da vez), liderados por um Myrddraal (os espectros da vez). Sua vila é devastada, e visitantes inesperados acabam ajudando a derrotar as feras. É aí que conhecemos Moiraine, uma Aes Sedai, um tipo de feiticeira de uma ordem arcana antiga, e um Guardião, de nome Lan, austero, inigualável na espada e com sentidos aumentados como um elfo. Eles vieram para resgatar Rand, Mat e Terrin, pois sabem que o Tenebroso está atrás deles, e impedir que os alcance é o começo para entendermos o porquê dos três serem especiais.

Como já disse, Jordan escreve muito bem. Sua narrativa é descritiva e até lenta demais em alguns pontos. Eu sou um fã desse tipo de escrita, mas tem gente que prefere a velocidade do thriller. Robert Jordan sabe criar ambientação na lentidão que propõe, mostrando cada curva do caminho em que os personagens caminham, tenta assim mostrar a evolução deles como pessoas, de tal forma que chegar ao fim é só um detalhe. A transformação da caminhada é o que importa.

Seus personagens são bons porque essa ambientação mais cuidada lhes dá mais carisma por podermos vê-los em suas ações e vidas quotidianas também. Seus preconceitos e defeitos afloram com a fome, ou o medo e a saudade de casa. As coisas não aparecem do nada, pois sempre são acompanhadas por histórias pregressas que vem em paralelo, ricas e interessantes. Com tantos nomes estranhos, por exemplo, não me perdi nenhuma vez e o glossário que vem no final do livro mal foi usado. Aliás, ponto para o autor, por saber batizar as coisas com nomes legais e fortes, como uma boa fantasia precisa.

Aos seis personagens, já apresentados, ainda segue um bardo, chamado Thom, que com seu conhecimento de mundo vai nos ajudando a entender o que está acontecendo, com convenientes explicações; e a Sabedoria, uma jovem curandeira e conselheira de Dois Rios, que vai atrás de Egwene achando ser necessário resgatá-la da Aes Sedai. Mais adiante comecei a ter dúvidas do porque de Thom ser introduzido na história, se seu desaparecimento foi tão repentino. Contudo, talvez haja alguma coisa que ainda não sei, que vamos descobrir nos próximos livros da série.

É excitante o enfoque que se dá as Aes Sedai. De início, não está totalmente claro se elas são benéficas ou não. O povo todo as teme, pois é conhecido que elas passam por cima das pessoas e as usam para seus objetivos. No passado foram responsáveis pela Ruptura do Mundo; o próprio Dragão foi um Aes Sedai, mas também são conhecidas por serem caçadoras de seres das trevas e as principais antagonistas de Ba’alzamon, o Tenebroso. Moiraine é muito poderosa e o povo, pastores e aldeões, se sente intimidado por alguém capaz de tocar o Poder Único, como a magia é conhecida. Os Guardiões, por sua vez são admirados e todo garoto sonha em ser um, e são os Guardiões quem acompanham as Aes Sedai e as protegem. Moiraine é misteriosa, assim como Lan. Vivem de segredos um com o outro, sem revelar nada aos rapazes. Seus destino é Tar Valon, o local onde vivem. Só lá estarão seguros dos Trollocs e dos Myrddraal, ou Desvanecidos, como também são conhecidos.

Sou um leitor exigente, e alguma lógica me escapa no enredo. Confesso que acho meio simplista um detalhe ou outro, como o fato de que a arquitetura das casas e objetos, são mais comuns do que imagino para um enredo medieval. Temos também a passagem, quando Lan e Moiraine se separam dos outros personagens, quando Mashadar tenta pegá-los em Shadar Logoth. Tudo me pareceu rápido demais, depois de tanto se esmerarem em proteger os jovens. O Guardião e a Aes Sedai pareceram se apartar deles com muita condescendência. Mas nada que destoe acima da deliciosa leitura.

É de se notar que muitos dos temas pontuais e artifícios que vejo atualmente nos livros de Rothfuss e Martin, por exemplo, apareceram antes nas páginas de Jordan. Imagino que ele foi muito influente nesses dois outros mestres. Como ignorar os latoeiros, dos livros de Rothfuss, ou os Mantos Brancos, de Martin, para ficar só em dois exemplos. Jordan toma posse de tantos outros “corpus” da literatura fantástica que é realmente difícil se separar de sua influência, desde 1990.

Num dado momento, achei que havia pego um erro grotesco na narrativa. Algo que se deveria certamente a uma distração por parte do autor (isso para não dizer desleixo). Não vou transcrever os trechos aqui, mas me refiro a repetição quase literal de uma passagem, em que Rand e Mat pegam uma carona com um fazendeiro numa carroça, algum tempo após a fuga de Shadar Logoth. Ele conversa com os jovens dos Dois Rios e pelo tom deles acaba desconfiando que estão com problemas. Seu primeiro impulso é tentar ajudar, mas acaba cedendo ao medo, por sua família poder sofrer com os Amigos das Trevas. Tira então dois cachecóis que pertencem as seus filhos e os dá aos dois rapazes que vão embora estrada afora (pág. 462). É quase meia página em que Jordan repete frases inteiras, textualmente, refazendo a mesma cena, algumas dezenas de páginas depois (pág. 501).

Inicialmente postei no Skoob, no meu Histórico de Leitura, reclamando e mostrando meu descontentamento por esta “verdadeira lambança”. Contudo, um colega viu e me alertou para uma pegadinha aí. Parece ser algo mundialmente conhecido e tem um FAQ específico para isso (http://www.steelypips.org/wotfaq/2_nondark/2.7_generalities/2.7.7_scarves.html). Bem, segundo esse link, há uma explicação para esse “erro”, na verdade um flashback, por Rand estar sofrendo com lapsos temporais devido ao fato de seu poder saidin estar se manifestando. 

Cara, não posso deixar de testemunhar o quanto isso é confuso. Ok, está explicadinho aí, nesse link, a intenção do autor, mas ficou ruim pacas! De jeito nenhum dá para perceber que as repetições foram intencionais, e ficar recorrendo a um link na internet para entender um livro não é exatamente uma solução aceitável, na minha opinião. Faltou, isso sim, um pouco mais de habilidade escrita. A confusão atrapalha, não evidencia que o personagem está experimentando esses tais lapsos temporais e parece, sim, que quem cometeu algum lapso foi o autor. Esquisitíssimo!

Pretendo continuar lendo a série. É muito boa na maioria dos requisitos que um leitor de fantasia teria, reafirmo, mas seria vital que o autor não ficasse inventando demais. Afinal, reinventar a roda (do tempo – não resisti ao trocadilho), fica muito melhor numa boa história, como é, não em esquisitices aleatórias como a apontada acima, que, definitivamente, não funcionou comigo.

















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