O Poder da Espada - Joe Abercrombie



Primeiramente, é um grande prazer ler um livro extremamente bem escrito como O Poder da Espada (Editora Arqueiro, 560 páginas, R$33,90), primeiro volume da trilogia A Primeira Lei. Ótima leitura, depois de uma série de outros livros que deixaram a desejar, seja em muitos ou em apenas alguns pontos perceptíveis, e aí incluo A Dança dos Dragões (Editora Leya, 2012), já resenhado aqui, no Menina. O Poder da Espada, é de autoria do britânico Joe Abercrombie, aclamado e idolatrado por uma legião de fãs mundo afora e volume inicial da trilogia A Primeira Lei.

Um livro de fantasia precisa de um herói? É pergunta que você deve se fazer. Se sim, então temos um (ou mais que um), contanto que você admita que seu herói possa ser um assassino, sanguinário e desonrado, no caso de Logen; ou um sádico, hipócrita e mesquinho, muito bem representado em Glokta. Logen se encaixa no perfil do herói, mas Glokta é muito pior e estaria melhor no segundo grupo, mais para o vilão. Urge, portanto, explicar porquê a fronteira entre o mocinho e o bandido não é tão perceptível em O Poder da Espada.

Nas primeiras páginas já ficamos sabendo que Glokta não é o que é por acaso. Ele foi preso e ficou sob tortura por dois anos, durante a guerra com Gurkhul, um reino do sul e inimigo de longa data da União. Era um exímio espadachim antes disso, um cavalheiro admirado e destemido, mas acabou sendo moldado pelo ferro em brasa e pelas seções de esfolamento e mutilação. Desfigurou-se totalmente. Perdeu metade dos dentes, sente dores inclementes na perna até quando dorme, um aleijado que precisa de sua bengala para tudo e até subir alguns degraus de uma escada é um verdadeiro suplício. Tornou-se um monstro de rancor, uma pessoa temida, de quem os outros se desviam na rua. Glokta é um inquisidor aos serviços da Casa das Perguntas, a sede da Inquisição do Rei, uma espécie de órgão de inteligência policial, dedicado a “obter respostas” de “suspeitos”, com o uso de métodos que lhe são bastante conhecidos. Glokta é um torturador.

Já Logen não é apresentado de forma menos intensa. Num determinado ponto, ele tem um companheiro de viagem moribundo, tremendo de febre e incapaz de andar. Logen se questiona por quê não o abandona, simplesmente. Não seria a primeira vez que o faria. A comida é pouca e ainda restam sessenta quilômetros para chegarem ao seu destino. Ele pergunta para o outro como chegar ao local. Com a resposta, ele então joga a mochila sobre os ombros, se livra de algum peso extra e, quando imaginamos que ele vai largar o outro para morrer, o põe nos ombros e anda os sessenta quilômetros restantes carregando o companheiro. É de arrepiar! 

Logen é foda! É o herói, mas já matou, assassinou, mutilou, esquartejou, esfaqueou e queimou incontáveis inimigos, nem sempre homens armados ou aptos a se defender. Não, Logen já matou também mulheres e crianças, tantas vezes que nem se lembra mais, mas é um homem cansado. Alguém que perdeu a mulher e os filhos para a guerra. A matança faz parte dele. Quando encontra o Primeiro Mago Bayaz, recebe comida, banho quente e segurança. Ele quase chora por isso. Então este o presenteia com uma espada admirável, e o guerreiro, ao invés de se sentir honrado, tem uma pontada de nostalgia e tristeza. Dá-se conta de que a perspectiva de viver, a partir dali, sem a necessidade de portar uma arma, é mera ilusão.

E reitero, como Abercrombie escreve bem! Que magia, em cada parágrafo e cada frase. Diálogos curtos e certeiros. Metáforas iluminadas. Comparações inusitadas. Surpresas que nos são apresentadas e que nos contam o ambiente, elucidam o pano de fundo e nos revelam pouco a pouco a história. Ele não escreve apenas, ele burila com genialidade, com paciência e habilidade ímpar, cada trecho. Detalhes são essenciais, inteligentes e bem encadeados. O autor é capaz, de numa única palavra, dar um sentido todo novo a ideia de narrativa. É hilário as vezes, sagaz, poético em outras e na maior parte do tempo, criativo. Tomando para si a responsabilidade de provocar surpresas com as ótimas frases que elabora.

Não posso negar que ainda estou meio confuso com relação ao tempo em que se passa essa história. Sim, é uma obra de fantasia, mas nas passagens dedicadas a Glokta, parece que estamos num período medieval tardio, por volta de 1500 ou até mais. Não temos alusão explícita à pólvora, embora ela seja citada de leve como uma espécie de magia obscura, numa passagem. Mas temos muitos detalhes das mobílias, arquitetura e vestimentas, como casacos, e a instrução universitária, que nos remetem a anos mais recentes. Contudo, com Logen parece que estamos numa época anterior, como os anos 1000, por aí, ou mesmo anterior a isso já que as lutas se fazem com machados e espadas. E há feiticeiros e shankas, criaturas do caos, uma espécie semelhante aos orcs, de origem pouco elucidada. Sabe-se apenas que foram criação do Artífice, um deus antigo do mal.

Um terceiro personagem também aparece nesse início, e não posso dizer que é um dos heróis, como também não se caracterizou totalmente como um vilão. Ele se chama Jezal. É um promissor capitão do “Próprio do Rei”. Algo como uma guarda de elite de oficiais bem treinados, integrantes da corte. Ele é inescrupuloso, preconceituoso, falso e interesseiro. Os capítulos dedicados a ele são a parte menos empolgante, para mim, até o momento. Muitas intrigas e picuinhas da nobreza a la Jane Austen, com o oficial se interessando pela mocinha sem sobrenome importante ou status, e martirizando-se por isso. Vive jogando cartas e ganhando inescrupulosamente o dinheiro suado dos colegas, ou treinando para um torneio de esgrima que poderá lhe dar distinção e um futuro promissor. E perde-se capítulo atrás de capítulo com Jezal treinando para o bendito torneio. Uma modorra que me lembra muito os treinos de quadribol em Harry Potter. Mas todo livro tem pontos baixos. Vamos ver até onde Jezal nos leva.

Há de se comentar que alguns autores que se preocupam em dar alguma personalidade aos seus personagens, no caso, criando um personagem antipático como Jezal, acabam conseguindo mais que apenas agregar conteúdo a eles. Nas passagens de Jezal, fiquei até frustrado com o andamento da narrativa. Saíamos de cenas e situações muito interessantes e excitantes, para nos metermos em momentos enfadonhos de pura procrastinação. Fazer um cara chato ser seu protagonista, pode contaminar, com chatice, a própria narrativa. Abercrombie não foi genial ao ponto de conseguir evitar isso. Percebe-se que, no futuro, o personagem pode vir a ser importante, para alguma coisa que o autor tenha planejado. Mas no momento, é de se perguntar se extirpar totalmente sua presença não faria o texto melhorar.

Há um ponto em que parece haver uma mudança de narrativa, onde até mesmo os personagens parecem adquirir novas características. No caso, para pior, em se tratando de Logen. É quando ele finalmente conhece o Primeiro dos Magos, Bayaz.

Bayaz foge um pouco do estereótipo do mago, com barbas brancas, segurando um cajado mágico. Não, ele é corpulento, forte e careca, com uma barba farta sob o queixo. Contudo, a partir desse momento, o grande guerreiro Logen Nove Dedos passa a ser caracterizado como um ajudante simplório e protagonista de cenas cômicas que não me agradou. A história, que ia muito bem, parece ceder a um humor pastelão que impregna a narrativa, até o final. Mesmo quando temos Glokta como personagem principal, um escroto que nos havia sido apresentado como azedo e repulsivo, temos um acréscimo das passagens jocosas, de humor gratuito. Não gostei disso. Não há drama que resista ao humor. Perde-se o clima! Tudo se nivela então ao nível de Jezal.

Temos ainda outras situações que, por alguma razão, se descolam da linha bem urdida e resolvida com que a história evoluía. Na passagem quando Bayaz conhece Ferro Maljinn, por intermédio do mago Yulwei, a credibilidade é muito baixa. Ela dá seus pitís, agride, xinga e arrebenta a casa, e ninguém faz nada. Logen age como um grande cão bobão e dócil. Outro fato é Jezal ter entrado na Torre do Artífice, junto com o Primeiro dos Magos, Logen e Glokta, presenciando várias coisas fantásticas, e depois continuar agindo na história como um idiota pomposo, como se nada tivesse mudado na sua concepção de mundo, sem o mínimo de maravilhamento que qualquer pessoa sentiria. Ainda bem que essas situações são raras, senão não estaria elogiando esse livro, por mais que a escrita do autor me agrade. Não é porque é um livro de fantasia que a lógica, intrínseca ao mundo em que se insere, é menos essencial.

Muitos fatos não são ainda explicados. Mas vamos descobrindo aos poucos que Bayaz precisa de Logen, por alguma razão que não é ainda explicada. No norte, explode a guerra pelas mãos de um chefe guerreiro bárbaro, chamado Bethod. Ele conhece Logen de longa data, que junto com alguns antigos companheiros, o serviram com suas vidas e espadas, algum tempo antes. Esses companheiros nós acabamos por conhecer também, embora eles achem que Logen tenha morrido. Fiquei muito interessado em saber mais sobre esses personagens, coisa que imagino, será realizada nos próximos volumes da série.

Na estadia dos heróis na cidade de Adua, a capital da União, acabamos por nos inteirar um pouco mais sobre a história do mundo de Abercrombie. Sim, há um pano de fundo complexo por trás de tudo, com sua própria história e lendas, tendo um enfoque maior na mitologia e nos deuses, já que Bayaz foi protagonista nesses acontecimentos antigos. Esse tipo de coisa é muito legal. A cidade de Adua, contudo, não é bem mostrada. Conhecemos meia dúzia de edifícios e caminhos, mas não tem cor ou substância como faz George Martin, por exemplo, com Porto Real ou Bravos. Falta mais detalhes, mais cheiros e sons, mais pessoas e suas falas, suas crenças e suas manias. Falta mais cotidiano e vida.

De maneira geral, gostei do livro. Ótimas situações, enredo envolvente, na maior parte do tempo, e escrita primorosa, além de uma revisão cuidadosa por parte da Editora Arqueiro. Mas a capa... Talvez tenha sido a pior capa de um livro de fantasia que vi nos últimos tempos, incluindo aí os nacionais. Estranho, tendo-se em vista que Patrick Hothfuss é autor da casa, e as capas dos livro dele são de autoria de Marc Simonetti, um dos mais badalados ilustradores da atualidade. A Arqueiro, portanto, já deveria saber alguma coisa sobre livros de fantasia e a relação de amor e ódio, dos leitores com as capas.











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