Roubo de Espadas - Michael J. Sullivan




  Há algumas regrinhas que tiro aqui, da minha cabeça, para a missão de batizar uma obra: o título de um livro nem sempre (ou nunca) deve ser algo óbvio demais. Dentro do possível, deve insinuar algo da trama, revelar sem entregar muito. Deve ser criativo sem ser estrambólico. Mas também não pode ser deveras apagado de tal forma a evitar que já haja um monte de livros com nomes similares. Um título é um nome que batiza toda uma ideia original. Se não for também original, forte e, de alguma forma, criativo, acabará por transmitir essas fraquezas, de roldão, para o conteúdo. Roubo de Espadas (Editora Record, 602 páginas, R$ 55,00) foi escrito pelo norte americano Michael J. Sullivan, considerado, em 2012, um dos mais bem sucedidos escritores de sci-fi e fantasia da terra do Tio San, mas sequer isso ajuda e aqui está a prova que nem sempre se acerta na escolha de um título. Mas, quanto ao conteúdo...

  Começamos essa fantasia medieval sendo apresentados a dois personagens principais, contratados para uma missão que seria suicida para alguém mais. Um é ladrão, assassino e exímio nas artes da dissimulação e invasão de propriedades alheias. Seu nome é Royce Melborn. Seu ambiente são as sombras, nas quais desaparece sempre como que por magia. É o cérebro por trás da dupla, conhecida por Riyria (e até o momento não sabemos de onde vem esse nome), não está para brincadeira e tem princípios que segue sempre à risca, como todo bom profissional. O outro é Hadrian Blackwater, este um espadachim habilidoso, um brutamontes que carrega três espadas como se uma só fosse pouco. Mas tem a técnica para isso, a arte do exímio espadachim, do guerreiro e do “carregador de pianos” que toda boa dupla deve ter. É muito mais coração que Royce (sinistro e circunspecto) e como é movido mais pela emoção, acaba por desprezar um dos princípios da dupla, rendendo-se ao brilho do ouro que os leva a aceitar um trabalho sem a devida ponderação e, assim, cair numa previsível armadilha. Carismáticos, contudo superficiais à beça.

  O que me incomodou um bocado em Roubo de Espadas foram exatamente os personagens. Há intrigas religiosas, e os personagens religiosos são, convenientemente, todos unidimensionais, falsos, amorais e execráveis por natureza. Há políticos, e eles são antiéticos, ladrões e corruptos, e além desses exemplos a planura se alastra na amplidão das páginas, alimentando o ódio de todos aqueles que odeiam o clichê.

  Royce é o cara "mal" da dupla, Hadrian o cara "bom". Arista, a princesa feiticeira, irmã de Alric Essendon, é o próprio estereótipo odiado pelas feministas, ficando na seara da mocinha incapaz de cuidar dos próprios problemas e que precisa ser salva por alguém. Alric, o príncipe herdeiro do rei Amrath Essendon, assassinado no princípio da trama, é impetuoso e meio que voluntarioso demais. aliás, o tratamento dispensado ao príncipe também me soou meio “fake”. Mesmo que Royce, ou qualquer um dos outros, tenha pouca consideração para com a realeza, por exemplo, ainda deveria haver certo deslumbramento, mesmo que negativo, diante do herdeiro da coroa. Pense você, diante da rainha da Inglaterra. Pode até achar a monarquia uma bobagem, mas estar diante da velhota, ou do papa, é alguma coisa inquietante, que dá uma bagunçada nas nossas tripas, ou não? Mas essa aflição intimidante, esse desconforto, não é ressaltado convenientemente no livro.

  Outro personagem de destaque, por quem nos afeiçoamos, é o monge Myron, filho enjeitado de um nobre da trama. É enviado a um mosteiro aos quatro anos e jamais deixou o convívio dentro dos muros do estabelecimento. Quando o mosteiro é destruído, Royce, Hadrian e Alric o levam embora, e o descobrimento do mundo externo é sempre uma alegria, instilando boas chances de riso. Contudo, o motivo de invasores mascarados terem deixado Myron vivo é um pouco forçado e deixa dúvidas quanto ao valor desse argumento narrativo por parte do autor. 

  A inocência do personagem Myron contrasta com uma habilidade que ele possui, a da memória fotográfica, o que é simples oportunismo para a trama, já que o monge vira escada para Hadrian, por exemplo, uma conveniência para facilitar a vida do autor. Toda vez que alguém quer saber sobre algum fato, lá está Myron, como o robô C3PO de Star Wars, para esclarecer às coisas. Isso é ruim. Sullivam prefere contar ao invés de mostrar, como rezaria a boa técnica narrativa. Portanto, quando nos embrenhamos um pouco em alguns dos plots mais significativos, como os conflitos políticos em que se defrontam imperialistas, monarquistas e... (e o que mesmo?) fica tudo muito embolado, sem liga, a ponto de nos esquecermos de coisas que poderiam sem importantes.

  O mais curioso, na minha opinião, é que alguns fatos, que deveriam ser do conhecimento geral dos personagens, não são. Tudo bem que eu, leitor, não saiba, mas Hadrian, Royce, Alric... deveriam saber sobre seus deuses, por exemplo. Ficar lá, Myron ou o mago Esrahaddon, sempre contando histórias para os outros não tem cabimento. Inadequado como conhecimento de mundo que se deveria esperar dos seus habitantes. É dessa forma que Sullivan vai adicionando algumas boas doses de mitologia, religião, magia e geografia ao seu mundo.Tudo bem, pelo menos o texto evolui e há substância, só acho que ele deveria ter mais habilidade para adicionar estes conteúdos.

  Lá pelo meio do livro tenho uma surpresa: são dois livros em um! Sim, agora Roubo de Espadas, como título, começa a fazer sentido, já que do meio para frente temos um segundo livro que acontece cronologicamente dois anos depois do primeiro. Royce e Hadrian estão em uma cidade chamada Conora, procurando pistas sobre os verdadeiros motivos que levaram a morte do rei Amrath, de Melengar, e da traição que quase os levou a morte também.

  Acabam por encontrar uma mocinha, Thrace, que veio de muito longe, de uma cidade chamada Dalhgren, no reino de Dunmore, que é assolada por um monstro. Lá ela perdeu quase toda sua família, com exceção do pai, que quer a todo custo achar e matar a criatura nefasta. Só que o pai de Thrace é um lavrador já velho e totalmente inábil com uma arma. A mocinha teme por sua vida e a notícia de que há uma torre construída por elfos e que abriga uma espada mágica, capaz de matar o monstro, veio “por acaso” aos seus ouvidos. Ela parte então para o sul atrás de Royce e Hadrian e os convence a ajudá-la.

  Mas, por que ela acha que Royce e Hadrian podem ser seus heróis salvadores? Bem... “alguém” lhe disse, e se você leu a primeira parte do livro vai saber quem é. Depois de dois anos, esse “alguém” precisa de ladrões habilidosos, e os Ryiria são o que ele procura. É que após salvarem o rei Elric e impedirem um golpe de estado, tanto Hadrian quanto Royce ficaram famosos a ponto de haver atores mambembes encenando suas aventuras reino afora. E esse alguém, não é ninguém menos que o mago Esrahaddon, que eles libertaram da prisão, depois de mil anos trancafiado. A escrita de Sullivan tem dessas coisas. A libertação do mago veio com muito mais facilidade do que eu poderia admitir numa boa fantasia medieval. A trama carece de seriedade em algumas passagens, como essa revelando certa imaturidade, para não dizer inabilidade técnica do drama. 

  Na cidade de Dalhgren, às margens do rio Nidwalden, existe uma torre, Avempartha, onde uma vez o antigo imperador Nareion realizou um encontro diplomático com os elfos, séculos após a Grande Guerra dos Elfos, quando o herói Novron os derrotou. Só que não há entrada para a torre, que fica no meio de um rio, pendurada na borda de uma imensa catarata. Chegar lá é impossível e passamos a maior parte da segunda história com Hadrian, o guerreiro, ajudando a vila da mocinha contra o monstro, uma criatura mágica chamada Gilarabrywn, e Royce, o ladrão, tentando desvendar o mistério que permitirá a entrada na torre e o resgate da espada encantada, a única capaz de matar o monstro.

  Myron e o rei Alric praticamente desaparecem na segunda parte, mas a história continua boa e há reviravoltas surpreendentes (ou previsíveis, imagino, para alguns) mas o traquejo narrativo de Sullivan melhorou muito, embora existam novamente as passagens em que personagens nos contam acontecimentos e mais do passado de Elan, o continente onde se passa a aventura. Sullivan ainda não consegue mostrar ao invés de contar, mas a história é divertida e, quase sempre, bem amarrada. Contudo, novamente o autor titubeia e algumas vezes arranja explicações ou desfechos fracos ou pouco convincentes para enigmas legais que insere no seu livro, e há mais um ou outro senão: como é que o imperador Nareion, mil anos antes, foi até a torre e entrou nela? Teve que usar o mesmo caminho que Royce acaba por descobrir com o anão Magnus (não vou contar porque é um spoilerzaço)? Não me parece plausível. E Arista? O que é que faltou para a princesa entender que a Igreja é a responsável pela morte de seu pai e, quase, da sua própria? E o final... seria ótimo se o que sugere não se confrontasse com o que vimos, quando Esra, Arista e Royce deixam a torre de Avempartha, após descobrirem quem é o Herdeiro (isso deveria ter ficado absolutamente claro. Fiquei extremamente decepcionado com a contradição que se configura na trama).

  De maneira geral a obra não é nada genial, mas temos uma legítima aventura de fantasia, absorvente e relativamente bem urdida, bons diálogos, heróis cativantes e destemidos, com anões e elfos ao estilo tolkeniano, intrigas políticas, torres enfeitiçadas e bestas voadoras devastando vilarejos. E eu adoro tudo isso.









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