A Companhia Negra - Glen Cook



Um livro tão bem cotado, uma capa legal e comentários tão positivos... As costumeiras recomendações fajutas de órgãos de imprensa especializada estrangeira na capa (Library Journal: “O talento único de Cook em combinar forte realismo e um universo surpreendentemente fantástico resulta em uma série ousada... Altamente recomendável.”) e até uma recomendação longa, instigante e comprometedora por parte do escritor brasileiro Eduardo Spohr, que ocupa toda a contracapa do livro, intitulada “Tolkien encontra Bernard Cornwell” (Tolkien deve estar se revirando no túmulo depois dessa). Tudo isso me levou ao A Companhia Negra (Record, 308 páginas, R$32,00), do autor norte americano Glen Cook, com muito gás e disposição, mas...

Esse entusiasmo inicial, não poucas vezes, acaba por atrapalhar o aproveitamento do que o texto me oferece. Sou leitor, acima de qualquer outra coisa, e isso me dá o direito de esperar o melhor! Então vem a conclusão que o livro é muito mediano para aquele entusiasmo todo. Mas as orelhas não falavam de uma história incrível, uma fantasia soturna, seres fantásticos, heróis realistas, magia, sombras, etc? A contracapa de Eduardo Spohr não o qualificava como “...extraordinário romance...”? Pois é.

Uma quantidade de narrativa enorme resumida e jogada em frases excessivamente curtas. Períodos nanicos, frases de apenas uma ou duas palavra às vezes. Parágrafos de quatro linhas com cinco ou seis pontos. E o tão propalado mal do romance russo caiu em cheio sobre esse livro (é quando a quantidade de personagens e locais só aumenta a cada página que viramos). Nunca tive de voltar a leitura tantas vezes para tentar entender o que estava acontecendo! Não temos fluência do texto, nada é suave; somos transportados de um acontecimento a outro através de pulos. O texto é tão duro, tão espinhoso que desagrada ao invés de seduzir. Estilo?

O artifício de construir frases curtas e períodos pequenos é uma técnica muito usada quando queremos dar velocidade a um trecho específico da trama. Um trecho pequeno, um excerto dentro de um todo muito maior. É aquela tão esperada cena de ação que brinda um capítulo ou uma sequência. É como se os acontecimentos fossem aparecendo tão velozmente que não tivéssemos a capacidade de captar os detalhes de cada objeto do cenário, numa sucessão de coisas que vem e são superadas por outras coisas em alta rotatividade. Cabe ao autor a habilidade técnica de usar esses truques. Veja um exemplo de uma tradução livre que fiz de um parágrafo magnífico do livro White Jazz, de James Elroy:

"... ternos azuis guardando o beco. Repórteres, carros rondando, quatro ternos e gravatas conduzindo motores doze cilindros... Caos: spray de sangue, boletim de apostas/ papel picado. Mesas telefônicas despejando, um tumulto: punhos de apostadores brigam na parte de trás da porta".
  -James Ellroy, White Jazz.

Ellroy criou cadência na sua prosa, cortada e rápida, aqui ele tem a liberdade para disparar uma série de substantivos e manter sua sintaxe simples. Além disso, com apenas quatro coisas específicas – policiais beat, detetives à paisana, carros de polícia e repórteres, ele define quase que instantaneamente o palco para uma batida policial com tiroteios à moda de Hollywood num antro de bookmakers e jogatina.

Agora, se não for como acima: uma passada de olhos num cenário complexo, numa sequência em que se quer demonstrar a rapidez na sucessão dos acontecimentos, fica ruim. Como se fosse uma lista de coisas que não jogam bem juntas. Veja agora um extrato do texto de Glen Cook. O objetivo dele aqui é simplesmente economia com as palavras. Isso, para um escritor, nem sempre é uma qualidade. Quase o livro todo é assim:

“A tempestade cedeu. Logo a estrada para Rosas estava aberta. O Apanhador de Almas se irritou. Rasgo tinha duas semanas de vantagem. Nós levaríamos uma semana para alcançar Rosas. Os rumores plantados por Caolho poderiam perder a eficácia antes de chegarmos.”
- Glen Cook, A Companhia Negra.

Então. O que acha? Gostou? Eu não. O livro abusa desse estilo telegráfico mais do que o ideal, chegando a extremos em que a própria coerência fica prejudicada. Há ainda uma sucesssão de termos anacrônicos espalhados pelos quatro cantos. Explico: A Companhia Negra, supostamente é uma narrrativa fantástica medieval. Homens em armaduras, capas e espadas, são contratados por um ente sinistro chamado Apanhador de Almas, a serviço da Dama, uma feiticeira imortal e ambigua que foi libertada de sua prisão. O Apanhador precisa da Companhia para controlar os rebeldes, que aqui e ali eclodem revoltas contra a dominação. Termos como advogado, lancha, boteco, grana, mala dentre outros, não deveriam fazer parte desse universo, concorda? Problemas de tradução que não foram acompanhados por uma revisão mais criteriosa? Eu acho que acabam descaracterizando a trama como quando eu era pequeno e via o Ultraman lutando contra o gigantesco monstro alienígena que arrasava Tókio e, de repente, aparecia o zíper da fantasia do bicho na imagem. Ah, sim, era divertido, mas não esperava mais do seriado; já com esse livro, minhas expectativas eram bem maiores, como já disse. Pena…

A história gira em torno de um médico de campo a serviço da Companhia Negra, encarregado de cortar e costurar feridos. Seu nome é Chagas (além de ser um sobrenome português, chaga significa: machucado, ferimento… Veremos que se enquadra perfeitamente na proposta do autor já que Chagas é um médico e todos os personagens tem algum apelido que os ligam a alguma característica pessoal). É um tal de Chagas para cá, Calado, para lá, Rasgo aqui e Manco ali… que parece uma versão sombria dos anões da Branca de Neve. E mesmo os nomes das cidades: Ferrugem, Rosas, Talismã… dizem muito pouco. Não carregam exatamente o que um nome dá: identidade. Chega um ponto que a identificação é tão fraca que nos confundimos se, por exemplo, Geada é uma pessoa ou um lugar. Muito ruim.

Chagas também é o Analista da Companhia Negra, o responsável por registrar nos Anais da tropa sua história e a de seus integrantes. Cada homem tem o direito de ter seus feitos inscritos nos Anais, para que se lembrem dele. A princípio tem gente que credita na conta de Chagas o fato da narrativa ser tão truncada e asséptica, sem a nuanças, a linguagem e ritmo de um bom texto. Isso é conversa para boi dormir, Ok! É deficiência do autor mesmo. Não há um fluxo real na obra, mas isso melhora por volta da página 80, por aí. No início tudo vem muito rapidamente, como se tivéssemos pegado o bonde andando e os personagens e o contexto já tivessem sido apresentados. Então ficamos boiando e compreensivelmente irritados.

Cook não tem (ou não tinha, já que estamos falando de um obra dos nos 80, do século pasado) o devido discernimento ou a devida habilidade literária para saber onde acelerar ou onde enrolar o meio de campo. Vai atropelando mesmo mas, por uma graça do destino (ou talento!), acaba por acertar também! Principalmente quando a narrativa, sempre muito rápida, é aplicada em ocasiões em que precisa mesmo ser ligeira. Temos sequências, como quando Chagas duela com Rasgo, sozinho, na neve, em que a ação é essencial, e aí Cook dá um banho! No evento em que Chagas vai se despedir de Corvo e Lindinha, no finalzinho do livro, idem. Há uma série de outras sequências mais no final, embora nem aí nos livremos da sensassão que nos persegue o livro todo, de estar deixando algo importante passar sem ter entendido direito a coisa toda.

Glen Cook, apesar dos defeitos, é um ótimo frasista (pág. 8: “Uma mosca pousou na careca dele e desfilou como uma imperatriz.” Fantástico, não é?! Há situação assim, em que ele consegue, numa frase de poucas palavras, resumir uma situação inteira com maestria e precisão ímpar). Cook é também muito criativo com seu enredo: cada exército, sejam os imperiais ou os rebeldes, tem lá seus big bosses. Os Tomados são os do império, já os rebeldes tem os Dezoito, também grandes feiticeiros com poderes fabulosos. Através dos Anais, que Chagas vai revelando, conhecemos um pouco sobre o pano de fundo da Companhia e do mundo ao redor, da história do reino, da Dama e dos Tomados, os reis feiticeiros do passado que a Dama e o Dominador tomaram para si como servos pessoais e generais de suas tropas.

Os personagens secundários como Corvo, Lindinha Duende, Caolho, o Capitão e o próprio Apanhador de Almas são muito planos e mal desenvolvidos. Esse último, inclusive, teve um desfecho decepcionante, na minha opinião, pinçando um detalhe do meio do livro claramente colocado ali para dar um certo efeito de novela mexicana. Não colou muito bem. A gente fica sabendo que um Tomado tombou ou que lutou contra outro e os dois caíram, pelas palavras de Chagas ou porque alguém está contando para ele. Isso acontece muito ao invés de Glen Cook deixar o texto mostrar. Ele parte da premissa que, se é Chagas quem escreve o livro, então não pode descrever coisas que não vê. Cook criou uma amarra da qual não pode se livrar e sua narrativa, que poderia ser brilhante, paga por isso.

Vamos então percorrendo a história, de missão em missão, como se fossem originalmente um conjunto de contos que Glen Cook um dia resolveu atar em um romance, colocando alguma conexão (insuficiente) entre eles. O fato é que acontece alguma coisa aqui, aí pulamos para duas semanas depois, então acontece mais um evento, a Companhia vence uma nova batalha e (incompreensivelmente) recua, e dois meses depois mais outro confronto, a Dama dá novas ordens que são transmistidas pelo Apanhador, e assim vamos… Com algum do cotidiano dos personagens servindo de cimento entre um “conto” e outro. Glen Cook realmente tem um estilo próprio, resta saber se agrada a você. A mim? Bem… Apesar de tudo, o que eu vi aqui desperta o suficiente de curiosidade para dar mais uma chance à Companhia Negra. Veremos, mas vamos deixar esse negócio de encontro entre Tolkien e Cornwell de lado, por favor. Nada a ver, mesmo!




ALBARUS ANDREOS

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