Império da prata - Conn Iggulden





Romances históricos são um tipo de criação literária sui-generis: parte ficção e parte realidade, dosadas pelo livre discernimento do escritor. Romances históricos devem obedecer a certas guias que levam em conta a vida de personagens de verdade, locais autênticos e acontecimentos que de fato ocorreram pinçados da narrativa histórica real, escrita pelos escribas e historiadores de todos os tempos. Vai então o escritor moderno e, chocado, maravilhado, impressionado, encantado, nauseado, excitado, ou seja, lá mais o que for, resolve “reescrever a história”, pondo lá um ou outro personagem fictício criado por ele, um ou outro local inventado, mudando uma data aqui ou ali, ou simplesmente dando uma cronologia nem sempre decisiva para os acontecimentos, mas nada que altere a fundo os fatos históricos academicamente aceitos. Trocam assim a estrita fidelidade aos fatos, pela maior homogeneidade, beleza, sensualidade, valentia e excitação da fantasia. O escritor de ficção histórica agrega calor e alma à frieza da biografia.

Toda boa história real que se preze tem mais de um historiador de plantão como autor, para dar sua versão do fato. Óbvio que quanto mais importante e fascinante o personagem em foco, mais autores aparecem para dar sua versão, tomando carona no vulto do personagem escolhido à luz de novas descobertas científicas e melhores métodos analíticos do passado. O mito deixado por grandes figuras é então revisitado de tempos em tempos por cientistas ávidos por dar sua contribuição pessoal à vida desses ícones universais. Diferentemente deles, o romancista foge dos trabalhos acadêmicos na dimensão em que aglutina as versões, duas, três, quinze... e compõe uma nova, mais descomprometida com a história, mas mais próxima da literatura!

Tem assim a oportunidade de criar um diálogo totalmente inventado entre um rei espanhol e um navegador genovês, que culminaram na descoberta de um Novo Mundo, mas que jamais aconteceu literalmente daquela forma; ou então uma tórrida cena de cama com frases de amor trocadas entre amantes, um imperador romano e uma imperatriz egípcia, sem que logicamente jamais tenha havido uma testemunha naquele luxuriante momento. Até mesmo a vida de um filho de carpinteiro de Nazaré, sua obra, seus milagres e a revolução na fé do mundo desde então, foram narrados por mais de uma testemunha ocular, e mesmo dentre estes, houveram versões próprias que originaram vários evangelhos. O romancista histórico moderno usa da história e a reinventa, e esse é seu prazer! E está pronto para viver a vida perto de criaturas humanas que se tornaram parte da própria gênese da civilização.


Tudo isso para dizer que, alguns dias atrás, lendo o livro Os Ossos das Colinas – terceiro volume da fenomenal série O Conquistador, de Conn Iggulden – vi uma das cenas mais chocantes e dramáticas da minha vida. Fico atônito ao imaginar que aquele fato pode ter sido real, ou mesmo que os subsídios para sua construção foram retirados de anais históricos fidedignos. Nela, o grande general Tsubodai, o orlok dos mongois, obedece a uma ordem direta do próprio Gêngis Khan: deveria ir até as terras do norte e lá assassinar Jochi, o primogênito do cã. Falando assim não temos um ínfimo fio de cabelo como amostra da dramaticidade do que foi a narrativa sufocante e densa criada por Iggulden, para demonstrar a crueldade e a implacável determinação de Gêngis Khan.

Vimos quando Tsubodai, com o coração pesado e a alma dilacerada, deu sua palavra a Jochi de que só viera buscá-lo. Era óbvio que Jochi sabia que morreria como exemplo por sua traição, mas até aquele momento ele imaginava que seria pelas mãos de seu pai que expiaria, a quem então talvez dissesse tudo o que estivera entalado na goela desde quando era ainda um menino. Mas as ordens que Tsubodai deveria obedecer eram muito mais mesquinhas, e o general obedeceu, rezando ao pai céu que o perdoasse por faltar com a palavra empenhada àquele a quem amava como filho. Para homens como Tsubodai, a palavra era ferro e pelo menos para ele, isso não foi mais realidade.

Neste novo livro, Império da Prata (Record, 406 páginas, R$ 55,00), Conn Iggulden conta como Ogedai, o novo grande cã de todos os cãs, se torna efetivamente Ogedai Khan, aquele que ergueu uma capital, para a nação, criada por seu falecido pai a partir de tribos nômades dispersas e eternamente em guerra umas contra as outras. Ogedai sempre viveria sob a sombra de seu pai e, sabendo disso, usa-a da melhor forma possível para ganhar tempo para a obra de sua vida. Karakorum é criada do nada, da prata amealhada pelas conquistas de Gêngis, no meio das planícies onde reinavam os mongois em suas tendas de feltro de pelos de cabra. A capital magnífica surge das planícies, dos braços dos artesãos e artífices contratados no mundo todo, para se tornar uma referência para a nação, assim como outras grandes cidades de seu tempo, a Kaifeng dos jim ou Samarkand e Bukhara, dos árabes.

Finalmente Karakorum deve ser inaugurada. É quando nossa história se inicia, três anos após os acontecimentos de Os Ossos das Colinas. Nesses três anos, Ogedai descobriu-se afligido por uma doença cardíaca incurável que o atormenta e prostra. Ele sabe que sua vida é curta, mas como cã não pode demonstrar fraqueza e deve sempre ter o rosto impassível ensinado por seu pai. De outro lado, Chagatai, o irmão invejoso e inescrupuloso, sempre tramando para assumir o lugar de cã, planeja o assassinato de Ogedai para o dia escolhido para a abertura definitiva dos portões da cidade.

Dos acontecimentos que decorrem da sublevação mal fadada, vem a grande notícia que Chagatai jamais esperara: ao invés do cepo do carrasco, a ele é dado um canato (um reino) a oeste de Karakorum, tão imenso que nem ele pode acreditar. Ogedai Khan sabe que sua fraqueza de corpo pode deixar a nação sem uma cabeça. Manter Chagatai vivo, longe de ser um ato de clemência, é uma decisão pensada por um estadista que temia pelo esfacelamento de uma nação ainda jovem demais (teria Ogedai conhecimento do que ocorrera com o grande império de Alexandre, o Grande? Iggulden não conta...). Mas um avatar da destruição, tão parecido com seu próprio pai, se contentaria com o reino dado, sendo que poderia ter tudo do modo mais difícil? Chagatai era filho de Gêngis Khan. O herdeiro que não foi, o sucessor que foi preterido. Seu peito arde de ódio e sua força é feita pelo mesmo metal quente que moveu os mongóis como uma doença de fogo pelo mundo.

E então vemos que Tolui, o irmãozinho mais novo de Ogedai e Chagatai tornou-se também um homem. Um príncipe que jamais ousou imaginar ser o cã da nação, por isso cresceu para servir o cã durante toda sua vida, preocupado mais em ser um bom homem, marido e pai. Casou-se com Sorhatani, a mais bela das moças mongois, que mesmo os olhos de Gêngis jamais haviam visto igual, e de seu ventre gerou filhos felizes. Dentre eles Mongke e Kublai. Da fraqueza de Ogedai devido à sua doença incapacitante, vemos o novo capítulo das nossas cenas avassaladoras. Iggulden se supera e descreve um dos momentos mais angustiantes e terríveis até agora em toda a saga. Com requintes de sadismo vemos como Ogedai aceita o tratamento imposto por um xamã para curar sua doença. Um tratamento que incluía o sangue de um ente de sua própria família. Uma cena tão pesada que simplesmente fechei o livro e decidi dormir, com um vazio tão grande dentro de mim que foi como se um furo vazasse minha própria alma.

O orlok Tsubodai badahur agora é um homem velho, com ele os jovens príncipes aprendem a arte de conquistar. O grande estrategista e o maior dos generais de Gêngis recebeu a missão de Ogedai Khan de expandir as fronteiras da nação mongol. Com ele estão os príncipes Batu, filho de Jochi que foi conduzido pela mão do próprio cã a posição de general, restabelecendo sua linhagem arruinada. Perspicaz e corajoso, as vezes opõe-se ao próprio Tsubodai e é um grande nome desse livro. Há ainda Guyuk, filho de Ogedai, o príncipe herdeiro do império tenta mostrar seu valor; e também cavalgam junto deles Mongke filho de Tolui e irmão de Kublai, e  Baidur, esse último, um filho de Chagatai.

Com cerca de cem mil homens, a horda de Tsubodai assola o sul da Rússia, chegando até Moscou, que cai assim como Kiev e Vladmir antes dela, e muitas outras cidades importantes se seguem. A conquista continua para o oeste e Polônia e Bulgária são também sobrepujadas pela força e velocidade da Horda Dourada, assim batizada por Batu. Uma das mais brilhantes vitórias de Tsubodai acontece contra as forças do Rei Bela IV da Hungria, às portas de Buda e Pest, na batalha do rio Sajo. Tsubodai aperfeiçoou uma antiga tática dos mongois, atraindo os inimigos com truques como a retirada estratégica, levando-os para o campo de batalha escolhido por ele. Soberbamente bem narrada por Conn Iggulden, deixa de fora contudo outra batalha muito importante, como o próprio escritor diz mas não justifica no final do livro, a batalha de Legnica, também imortalizada na história.

O chamado da nação traz um final frustrante para o grande general, e sem a interrupção do avanço de Tsubodai os historiadores são quase unânimes em dizer que o mundo todo seria conquistado, pois não havia força que pudesse se opor aos mongois na época. Conn Iggulden diz então que se não fosse o motivo que levou Tsubodai de volta a Karakorun, talvez não houvesse acontecido o período Elizabetano e sequer um império britânico. Parafraseando o autor, significa que ao invés de escrever essa resenha em português, provavelmente escreveria em mongol ou mandarim. Livro excelente! Recomendadíssimo.

Como ressalva, gostaria de dizer também que, ao que parece, a Editora Record vem se descuidado em alguns livros de uma revisão mais cuidadosa. Nesse Império da Prata, há um número maior de erros de construção e coerência que seria aceitável. Eu, particularmente, fico incomodado com isso. Não acho que seja papel de uma editora dispor ao público um livro menos que extremamente bem revisado. Fica o protesto!

Série O Conquistador:

1. O Lobo das Planícies
2. Os Senhores do Arco
3. Os Ossos das Colinas
4. Império da Prata
5. O Conquistador


ALBARUS ANDREOS
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