Livraria Limítrofe (Estronho, 192 páginas, R$ 39,90) é um livro agradável de ler. Não, não vou falar do excelente acabamento gráfico, de não ter capa (!) e do ótimo trabalho da Estronho na edição que possuo (outras foram lançadas com capa e com outro visual). Nada de encher linguiça aqui. Quero saber do conteúdo do livro, pois foi o que me atraiu de imediato. Tipo, amor à primeira ideia, mesmo.
Li-o em um dia. Conta a história de uma livraria muito singular que, aos moldes do seriado Além da Imaginação ou ainda, tomando um gancho em A Ilha da Fantasia, parece realizar os sonhos de leitura do visitante. Ela só aparece uma vez a cada leitor e estes leitores são escolhidos sempre a esmo por um polvo chamado Paul (!), que vive num aquário dentro da livraria. Weird!
É um lugar mágico, onde coisas espantosas acontecem. Lá o afortunado leitor vê suas leituras virarem imagens diante de si e o Livreiro (lógico) é a pessoa responsável por cuidar da livraria, com sua luneta mágica, seu apito de vidro e sua gaita dourada, objetos com poderes especiais que o auxiliam no processo de permitir que a magia da leitura se realize. Muito bom! Coisas espantosas acontecem como uma tela gigante de cinema 3D à frente do felizardo, embora sem interações que digam a que estas imagens vieram. É mágico e também algo meio que gratuito, que não acrescenta nada à narrativa. Uma pequena (mas importante) observação: em nenhuma página de Livraria Limítrofe alguém lê um livro. Seria de se esperar que alguém lesse, sei lá.
Não há metalinguagem como se poderia esperar num livro que fala de livros. Cada um dos agraciados leitores apenas vê a realização de coisas que leu, mas só isso. A não ser a moça no hospital, que abre e folheia um livro de dobraduras (mas isso é ler? Não.) e o que ela vê é o que lhe aconteceu, o que era e o que é e... E o que mesmo? Para que serviu isso? É o melhor conto do livro, mas ficou um pouco no ar. Vamos em frente.
São contos, sim. Como cada leitor aparece em um capítulo diferente e vive experiências dife-rentes (todas sempre cheias de referências veladas a outras leituras e personagens marcantes da literatura e das histórias em quadrinhos), o que une o todo é apenas a livraria e a voz mono-córdico do narrador (quem narra é o Livreiro Limítrofe). Sim, a narrativa é meio cansativa por ser um “diálogo em que só um fala”, tipo: “Olá, tudo bem? Que bom que você chegou. O que? Estava preso no trânsito, não se preocupe. Sim, vou ser breve. Quer um café? Ah, sim, aqui es-tá...” O autor quer dar a impressão que você é a pessoa com quem o Livreiro fala, mas é como estar perto de alguém falando ao telefone sem que você obviamente esteja escutando o que o interlocutor está respondendo. É até um pouco irritante.
Há também um uso persistente por parte do autor de situações que afirmam o quanto a litera-tura é ótima, o quanto as pessoas ganham por ler e as que não leem são pessoas piores que as que leem (será?). Há quase uma coisa de querer passar conceitos morais. Terrível isso, por mais positiva que seja a intenção. Há por exemplo um cara que gosta muito de futebol e um outro que não gosta tanto assim. O primeiro é xucro, tosco, ignorante e tem um emprego ruim. Já o que não é muito fã de futebol é educado, certinho, tem mestrado e doutorado e é a ele que a livraria aparece como um lugar mágico; já ao fã de futebol, é um lugar horrível, cheio de goteiras e mofo por todo lado. Além de ser muito tendencioso este estereótipo do burro e do inteligente, sugere que futebol é um coisa de gentinha e que gente bonita, inteligente e descolada gosta é de literatura. Haja preconceito! E isso vem do autor mesmo, não dá nem para fingir que é apenas o raciocínio do personagem.
Além disso há diálogos inverossímeis entre os personagens, conclusões que aparecem do nada e reações incongruentes com a realidade psicológica (por mais que se fale de irrealidade e fantasia no livro, no mundo real as pessoas agem à visão de um monstro com pavor, até nos sonhos. Não dá para imaginar que a reação humana é diferente do que é na realidade só porque estamos num mundo de fantasia). Num sonho, se você está pelado diante dos outros, você fica com vergonha, se sente humilhado e procura esconder sua nudez. Se cai de cima de um prédio, a pessoa sente o terror da queda e acorda gritando, e por aí vai. Ignorar isso é cobrar demais do leitor. Não há ludicidade que resista a um escritor que cobra demais daquele que deve ser seu parceiro no processo da leitura.
Eu comprei esse livro por indicação de alguém que gosta de literatura. Algo como “olha como este autor nacional de literatura fantástica escreve bem”, e no final fiquei achando que não é bem assim... Falta um desempenho literário melhor a esta boa ideia de Alfer Medeiros. Não queria bater forte demais nesta crítica, pois o autor é sincero, só não conseguiu entregar o pei-xe que se comprometeu. Talvez um Carlos Ruiz Zafón... Na verdade, essa proposta do Alfer é realmente alta! Concluí-la a contento seria um trabalho digno de nota. No livro A sombra do Vento, de Zafón, senti falta de mais enredo envolvendo a tal Cemitério dos Livros Esquecidos, pois o escritor preferiu circular mais pela Barcelona franquista de meados do século XX. Achei, por nenhum motivo, que Alfer retomaria uma temática próxima a esta. A expectativa talvez tenha me engendrado essa má vontade.
O livro merecia um melhor tratamento estilístico e técnico, e o autor é formal demais. Escreve demais o arroz com feijão; leva ao limite a máxima de que “escrever menos é mais” e não con-segue nunca me surpreender positivamente. Não dá as nuances necessárias a uma boa escrita, não dá cor ou aroma. Se o tema “biblioteca infinita, labirintos e congêneres lembra muito al-gumas das fixações temáticas de Jorge Luis Borges, pode ir refreando o entusiasmo porque Alfer Medeiros não chega nem a arranhar genialidade similar. Livraria Limítrofe, apesar do excelente título, é só um livro certinho... simpático... bom. Fino no tamanho, se bem que no sentido de ser insubstancial também.
ALBARUS ANDREOS