Temujin não existe mais. Em seu lugar agora reina o grande cã das planícies, Senhor de todas as tribos, unificadas pelo bom senso ou pela coação dos mortíferos arcos compostos mongóis. Gêngis Khan, é como o chamam agora, o gurcã do mar de capim (dá para se ver de onde George R. R. Martin tirou inspiração para compor seu Karl Drogo e seus cavaleiros dothraki, na aclamada série "As Crônicas de Gelo e Fogo").
É aqui que o segundo volume da magnífica série O Conquistador, de Conn Iggulden, se inicia. Os Senhores do Arco (Record, 416 páginas, R$ 49,90) é a sequência de O Lobo das Planícies, que nos apresentou o jovem Temujin e sua família, contando a infância e as desgraças do menino que seria forjado em aço, sangue e ódio para reunir as tribos mongóis em frangalhos diante dos tártaros e do invencível império Jin.
Gêngis está no auge de seu poder. Já lutou e venceu muitas guerras. Toda a oposição foi varrida. Ele então convoca as tribos que ainda restam sob o ultimato de "submeta-se ou morra também" e todos os que tem juízo atendem seu apelo. Com um exército gigantesco os mongóis agora cavalgam para o sudeste, onde os xixia, primeiro, e depois o jin, os aguardam atrás das grandes muralhas. Acompanhamos nesse meio-tempo as aventuras e desventuras de seus irmãos, Kashiun, Khasar e Temuge, bem como o florescimento de seus filhos, principalmente Jochi, oprimido pela sua história e a dúvida que paira sobre seu nascimento (seria ele filho de Gêngis, ou então fruto dos estupros a que Borte, sua mãe, fora submetida ao ser capturada pelos tártaros, anos antes).
A narrativa é repleta de força e energia como foi em O Lobo das Planícies, embora me parece que neste segundo livro temos um ligeira queda na qualidade narrativa. Nada crucial, contudo. Com a determinação de Gêngis falando mais alto o tempo todo, nos deparamos com os universos dos outros personagens que o circundam. Ótimas descrições, personagens muito bem construídos, discurso sempre afinado com o momento histórico retratado.
Fiquei surpreso em algumas passagens, como por exemplo quando se descreve como Jochi não se parece com Gêngis, o que poderia sugerir que ele seria filho ilegítimo. O garoto é descrito com olhos escuros, diferentemente dos irmãos, com olhos amarelos claros, como os de seu pai; amarelos como os dos lobos (?). Noutra passagem, Kashiun chama alguns marinheiros jin (chineses) de "amarelos", numa outra referência a que os mongóis não fossem asiáticos de olhos puxados como eu imaginava. Isso me parece um contrassenso, pois é só dar uma olhada na internet para ver que os mongóis são sempre mostrados, a grosso modo, como chineses. Eu, pelo menos, não consigo diferenciar só olhando a cara. Fica a dúvida...
Em outras duas passagens, novamente, fiquei de orelhas em pé. Na página 22, há um rica descrição de como seria a iurta (tenda) de Gêngis Khan. Ela é descrita como sendo maior, mais rica e claramente diferenciada das outras iurtas destinadas ao restante do povo. Contudo na página 112, diz-se que a iurta do grande cã era igual a todas as outras, não diferindo de qualquer uma das demais. Parece-me que faltou um pouco de coerência ao nosso Conn Iggulden, aqui.
Diferentemente de muitos outros livros, Os Senhores do Arco nos mostra o lado daqueles por quem não torcemos. Eu pelo menos não torço por Gêngis Khan. Isso dá uma perspectiva diferente e crítica aos nossos olhos. Há muito que justificar o personagem principal como fruto de seu meio, fruto do ódio e da fome. Gêngis foi engendrado para realizar o que realizou e só a sorte pode justificar até onde chegou. As hordas do grande líder mongol eram desorganizadas, formadas por tribos que nutriam rixas pessoais umas com as outras e mesmo assim puseram aos seus pés povos com superioridade tática e numérica avassaladoras. Este livro é um tributo então à persistência, à força, à temperança e a impetuosidade.
O povo mongol foi oprimido por mil anos pelos jin, um império terrível que comprava, subornava ou simplesmente massacrava os que se opunham a sua supremacia no sudeste asiático. Por isso os mongóis queriam simplesmente extirpar qualquer traço dos inimigos de sobre a terra. Mas os jin tinham uma cultura riquíssima, conheciam a escrita, construíam cidades, criavam leis e veneravam a inteligência e a perícia de seus sábios. Mudavam a paisagem com a irrigação e o saneamento básico, plantavam e alimentavam seu povo com seu trabalho. Já os povos das tribos, como os mongóis chamam-se a si próprios, viviam em tendas, eram itinerantes, não tinham escrita ou agricultura, criavam suas crianças com o único intuito de prepará-las para a guerra e decidiam tudo com o derramamento de sangue.
É fácil então entender porque os xixia ou os jin chamam-nos de bárbaros, sem qualquer contexto relativo às culturas diferentes das praticadas na Grécia ou em Roma, berços da civilização ocidental. Bárbaro é sinônimo de selvagem aqui. É nesta conjuntura que compartilhamos a visão que Chen Yi, um contrabandista e chefe de um bando de ladrões, em Baotou, uma das cidades no caminho do gurcã mongol. Numa conversa entre ele e Gêngis notamos sua decepção com o que há de vir. Embora odeie os jin, as perspectivas de ter os mongóis governando sua cidade são aterradoras. Vemos que, se os jin caírem, cairá aquilo que faz um ser-humano algo melhor que um animal. Por mais corruptos que possam ser, por mais que as leis sejam só para os despossuídos e não atinjam os nobres, por mais que vejamos como os mongóis são o espelho dos jin, ainda assim preferimos a civilização à barbárie, que massacra festivamente homens, mulheres, crianças, velhos e qualquer traço de sua cultura. A isso chamamos "limpeza étnica". Mas foram centenas de anos de opressão do império Jin e nos perguntamos até onde um povo oprimido, maltratado e desprezado pode suportar. Vemos o asco que os jin nutriam pelos mongóis, o nojo que tinham só de olhá-los. Gêngis resolveu dar um basta. A vingança, mais que qualquer outra coisa, movia o povo mongol.
Há uma semelhança muito grande entre Conn Iggulden e outro grande escritor de ficção histórica, Bernard Cornwell (impossível não compará-los, tal a magnitude de ambos, sua beleza escrita e erudição, além da semelhança de temas), mas também uma diferença muito importante: Enquanto Cornwell se debruça sobre cada batalha, esmiuçando cada movimento de personagens e tropas, Iggulden segue avassalador sobre as passagens menos importantes e então concentra-se sobre a batalha final, despejando dezenas e dezenas de páginas em cima o evento.
Em nenhuma linha das narrativas de Cornwell (só para citar algumas de suas obras: as Crônicas Saxônicas, como exemplos) dá para ver tanta alegria nos vikings com a matança desenfreada, como se vê nos mongóis de Iggulden. Os vikings são descritos como raivosos e sanguinários, rufiões e beberrões; parecem matar os inimigos imbuídos de ferocidade e certa honra, já que matar um oponente que empunhe uma espada é dar honra ao seu nome no outro mundo. Vão para as guerras como vão para uma festa: bêbados, felizes e excitados. Um oponente é visto com dignidade e embora não se distinga um cadáver de outro, depois de meneada a lâmina e derramado o sangue, os vikings apenas amam matar, pois isto os faz fortes aos olhos dos deuses. Já os mongóis, odeiam os inimigos e os desprezam com todas as suas forças. Não bebem antes de ir para a guerra para poderem matar melhor e o mais dolosamente possível. Para os mongóis, os inimigos são piores que cães. A grosso modo, os vikings de Cornwell são freiras carmelitas, comparados com os mongóis de Iggulden.
O autor demonstra isso com extrema maestria na passagem do Desfiladeiro da Boca do Texugo. É emblemática a brutalidade dos mongóis, após Gêngis conquistar e fazer tantos prisioneiros que eles passam a ser em número quase maior até que seus próprios guerreiros. Os cativos são deixados para morrer de fome, ou são usados para o treinamento de combate sendo massacrados apenas para que os guerreiros menos experientes aprenderem a guerrear, ou são colocados na frente de batalha, como escudos, para receberem a maioria dos disparos de bestas e assim cansarem e pressionarem as linhas inimigas. Oponentes são apenas carne a ser morta, para os mongóis. É arrepiante pensar que um dia existiram e um alívio saber que perderam, no final. Mas isso certamente veremos nos próximos livros da série O Conquistador.
Série O Conquistador:
1. O Lobo das Planícies
2. Os Senhores do Arco
3. Os Ossos das Colinas
4. Império da Prata
5. The Blood of Gods (previsão de lançamento: 2014)
É aqui que o segundo volume da magnífica série O Conquistador, de Conn Iggulden, se inicia. Os Senhores do Arco (Record, 416 páginas, R$ 49,90) é a sequência de O Lobo das Planícies, que nos apresentou o jovem Temujin e sua família, contando a infância e as desgraças do menino que seria forjado em aço, sangue e ódio para reunir as tribos mongóis em frangalhos diante dos tártaros e do invencível império Jin.
Gêngis está no auge de seu poder. Já lutou e venceu muitas guerras. Toda a oposição foi varrida. Ele então convoca as tribos que ainda restam sob o ultimato de "submeta-se ou morra também" e todos os que tem juízo atendem seu apelo. Com um exército gigantesco os mongóis agora cavalgam para o sudeste, onde os xixia, primeiro, e depois o jin, os aguardam atrás das grandes muralhas. Acompanhamos nesse meio-tempo as aventuras e desventuras de seus irmãos, Kashiun, Khasar e Temuge, bem como o florescimento de seus filhos, principalmente Jochi, oprimido pela sua história e a dúvida que paira sobre seu nascimento (seria ele filho de Gêngis, ou então fruto dos estupros a que Borte, sua mãe, fora submetida ao ser capturada pelos tártaros, anos antes).
A narrativa é repleta de força e energia como foi em O Lobo das Planícies, embora me parece que neste segundo livro temos um ligeira queda na qualidade narrativa. Nada crucial, contudo. Com a determinação de Gêngis falando mais alto o tempo todo, nos deparamos com os universos dos outros personagens que o circundam. Ótimas descrições, personagens muito bem construídos, discurso sempre afinado com o momento histórico retratado.
Fiquei surpreso em algumas passagens, como por exemplo quando se descreve como Jochi não se parece com Gêngis, o que poderia sugerir que ele seria filho ilegítimo. O garoto é descrito com olhos escuros, diferentemente dos irmãos, com olhos amarelos claros, como os de seu pai; amarelos como os dos lobos (?). Noutra passagem, Kashiun chama alguns marinheiros jin (chineses) de "amarelos", numa outra referência a que os mongóis não fossem asiáticos de olhos puxados como eu imaginava. Isso me parece um contrassenso, pois é só dar uma olhada na internet para ver que os mongóis são sempre mostrados, a grosso modo, como chineses. Eu, pelo menos, não consigo diferenciar só olhando a cara. Fica a dúvida...
Em outras duas passagens, novamente, fiquei de orelhas em pé. Na página 22, há um rica descrição de como seria a iurta (tenda) de Gêngis Khan. Ela é descrita como sendo maior, mais rica e claramente diferenciada das outras iurtas destinadas ao restante do povo. Contudo na página 112, diz-se que a iurta do grande cã era igual a todas as outras, não diferindo de qualquer uma das demais. Parece-me que faltou um pouco de coerência ao nosso Conn Iggulden, aqui.
Diferentemente de muitos outros livros, Os Senhores do Arco nos mostra o lado daqueles por quem não torcemos. Eu pelo menos não torço por Gêngis Khan. Isso dá uma perspectiva diferente e crítica aos nossos olhos. Há muito que justificar o personagem principal como fruto de seu meio, fruto do ódio e da fome. Gêngis foi engendrado para realizar o que realizou e só a sorte pode justificar até onde chegou. As hordas do grande líder mongol eram desorganizadas, formadas por tribos que nutriam rixas pessoais umas com as outras e mesmo assim puseram aos seus pés povos com superioridade tática e numérica avassaladoras. Este livro é um tributo então à persistência, à força, à temperança e a impetuosidade.
O povo mongol foi oprimido por mil anos pelos jin, um império terrível que comprava, subornava ou simplesmente massacrava os que se opunham a sua supremacia no sudeste asiático. Por isso os mongóis queriam simplesmente extirpar qualquer traço dos inimigos de sobre a terra. Mas os jin tinham uma cultura riquíssima, conheciam a escrita, construíam cidades, criavam leis e veneravam a inteligência e a perícia de seus sábios. Mudavam a paisagem com a irrigação e o saneamento básico, plantavam e alimentavam seu povo com seu trabalho. Já os povos das tribos, como os mongóis chamam-se a si próprios, viviam em tendas, eram itinerantes, não tinham escrita ou agricultura, criavam suas crianças com o único intuito de prepará-las para a guerra e decidiam tudo com o derramamento de sangue.
É fácil então entender porque os xixia ou os jin chamam-nos de bárbaros, sem qualquer contexto relativo às culturas diferentes das praticadas na Grécia ou em Roma, berços da civilização ocidental. Bárbaro é sinônimo de selvagem aqui. É nesta conjuntura que compartilhamos a visão que Chen Yi, um contrabandista e chefe de um bando de ladrões, em Baotou, uma das cidades no caminho do gurcã mongol. Numa conversa entre ele e Gêngis notamos sua decepção com o que há de vir. Embora odeie os jin, as perspectivas de ter os mongóis governando sua cidade são aterradoras. Vemos que, se os jin caírem, cairá aquilo que faz um ser-humano algo melhor que um animal. Por mais corruptos que possam ser, por mais que as leis sejam só para os despossuídos e não atinjam os nobres, por mais que vejamos como os mongóis são o espelho dos jin, ainda assim preferimos a civilização à barbárie, que massacra festivamente homens, mulheres, crianças, velhos e qualquer traço de sua cultura. A isso chamamos "limpeza étnica". Mas foram centenas de anos de opressão do império Jin e nos perguntamos até onde um povo oprimido, maltratado e desprezado pode suportar. Vemos o asco que os jin nutriam pelos mongóis, o nojo que tinham só de olhá-los. Gêngis resolveu dar um basta. A vingança, mais que qualquer outra coisa, movia o povo mongol.
Há uma semelhança muito grande entre Conn Iggulden e outro grande escritor de ficção histórica, Bernard Cornwell (impossível não compará-los, tal a magnitude de ambos, sua beleza escrita e erudição, além da semelhança de temas), mas também uma diferença muito importante: Enquanto Cornwell se debruça sobre cada batalha, esmiuçando cada movimento de personagens e tropas, Iggulden segue avassalador sobre as passagens menos importantes e então concentra-se sobre a batalha final, despejando dezenas e dezenas de páginas em cima o evento.
Em nenhuma linha das narrativas de Cornwell (só para citar algumas de suas obras: as Crônicas Saxônicas, como exemplos) dá para ver tanta alegria nos vikings com a matança desenfreada, como se vê nos mongóis de Iggulden. Os vikings são descritos como raivosos e sanguinários, rufiões e beberrões; parecem matar os inimigos imbuídos de ferocidade e certa honra, já que matar um oponente que empunhe uma espada é dar honra ao seu nome no outro mundo. Vão para as guerras como vão para uma festa: bêbados, felizes e excitados. Um oponente é visto com dignidade e embora não se distinga um cadáver de outro, depois de meneada a lâmina e derramado o sangue, os vikings apenas amam matar, pois isto os faz fortes aos olhos dos deuses. Já os mongóis, odeiam os inimigos e os desprezam com todas as suas forças. Não bebem antes de ir para a guerra para poderem matar melhor e o mais dolosamente possível. Para os mongóis, os inimigos são piores que cães. A grosso modo, os vikings de Cornwell são freiras carmelitas, comparados com os mongóis de Iggulden.
O autor demonstra isso com extrema maestria na passagem do Desfiladeiro da Boca do Texugo. É emblemática a brutalidade dos mongóis, após Gêngis conquistar e fazer tantos prisioneiros que eles passam a ser em número quase maior até que seus próprios guerreiros. Os cativos são deixados para morrer de fome, ou são usados para o treinamento de combate sendo massacrados apenas para que os guerreiros menos experientes aprenderem a guerrear, ou são colocados na frente de batalha, como escudos, para receberem a maioria dos disparos de bestas e assim cansarem e pressionarem as linhas inimigas. Oponentes são apenas carne a ser morta, para os mongóis. É arrepiante pensar que um dia existiram e um alívio saber que perderam, no final. Mas isso certamente veremos nos próximos livros da série O Conquistador.
Série O Conquistador:
1. O Lobo das Planícies
2. Os Senhores do Arco
3. Os Ossos das Colinas
4. Império da Prata
5. The Blood of Gods (previsão de lançamento: 2014)
ALBARUS ANDREOS