Resenha: O Pacto - Joe Hill



Quando ouvi falar que Horns (esse é o nome em inglês do livro O Pacto, Editora Sextante, 2010) seria filmado, tendo como protagonista o ator Daniel Radcliffe, de Harry Potter, disse a mim mesmo: “está na hora de tirar aquele livro vermelho da estante e lê-lo”. Pois é, O Pacto, é um daqueles livros que comprei (ou ganhei) e que estavam acumulando poeira lá em casa. Não que tenha me decepcionado com o primeiro livro de Joe Hill, nada disso. No caso, A Estrada da Noite, que considero um dos melhores do gênero terror, superando inclusive muitos dos do pai dele, o consagrado e mitológico Stephen King. É que costumo guardar sempre as safras boas para quando estiver cansado de ler livro ruim. O Pacto, portanto seria esse porto seguro, a quem recorrer em caso de vacas magras. Seria...

Apesar de uma revisão um tanto descuidada por parte da Editora Sextante (Gente, mais atenção, por favor, senão comprometem o resultado final da obra! É bizarro o modo como o revisor usa mal o artigo definido, durante todo o livro.), temos em O Pacto, nada mais que uma história de amor. Não, não estou falando que é a história de um cara que vira o diabo e que há uma história de amor como pano de fundo. Nada disso, é o contrário. Se você ler a sinopse do livro ou se ater ao que está escrito na contracapa, terá outra impressão, mas confie em mim, O Pacto é uma história de amor, mesmo assim.

Tudo bem que não é melosa, cheia de beijos apaixonados, romance e pipipi... A paixão entra aqui como a pólvora entra em contato com o fogo. Há muito sexo, ciúmes e também sofrimento passional. E devido a estrutura do livro, que pinta e borda com flashbacks, temos a evolução desse amor, começando com uma brincadeira irresponsável entre adolescentes, num banco de igreja, e terminando num crime brutal, com estupro e tudo, como só o amor doentio e sem freios pode proporcionar. Nunca tivemos tantas evidências de como o amor está tão perto do ódio, como em O Pacto.

Temos que ter em mente que Merrin, a namorada de Iggy Perrish, já começa o livro assassinada e aí teremos a transformação de Ig em algo “como o diabo”, pelo menos fisicamente, já que da noite para o dia aparecem chifres em sua testa (e isso não é uma metáfora para a traição). Além de Ig e Merrin, um triângulo se forma com a presença de Lee Tourneau, um rapaz problemático a quem Ig considera seu melhor amigo. Lee odeia a mãe, é enigmático e vai crescer e se tornar o vilão do livro. Já Ig, o mocinho que se transforma em diabo, tem lá sua Via Sacra a ser percorrida, e sua transformação em anti-heroi chifrudo parece, a princípio, ser algo que vem só de sua própria mente, mas o fato é que as pessoas que se aproximam dele, começam, inexplicavelmente a lhe relatar os detalhes mais sórdidos de suas existências.

Você, leitor, tem um segredo que não contaria a ninguém? Uma perversão? Uma nódoa na alma de que se envergonha (ou não)? Já roubou, enganou, fez algo que dá graças a Deus de ninguém saber? Todo mundo tem um detalhe escabroso escondido. Um desejo insano, a vontade de matar, o sadismo, um ódio inenarrável por alguém, quem sabe até uma pessoa muito próxima... da própria família, talvez? Esses são alguns dos pecados que as pessoas vão jogando sobre o pobre Ig que, de pasmo, passa a entender a natureza de seus chifres. Eles lhe dão o poder de saber os segredos horríveis, os piores desvios de caráter das pessoas, seus lados ocultos dos quais se envergonham, embora elas próprias nem se lembrem depois de terem lhe dito coisa alguma. Só basta ele perguntar que lá vem barbaridades. Aliás, elas nem se lembram dele depois, muito menos do fato de Ig ter chifres, como se num instante ele fosse o próprio mal interior delas próprias, alguém que não é fisicamente uma pessoa,o capetinha que aparece sobre o ombro esquerdo dos personagens de desenho animado, dando conselhos ruins. Resumindo: o diabo!

É assim que Joe Hill aborda seu personagem. Pelo lado de Ig, ele acorda certo dia e passa a caminhar, comer e dormir como uma testemunha do mal que acomete a sociedade em que vive em Gideão, New Hampshire, no interior dos EUA. Já as pessoas relacionam-se com ele como o fariam com uma figura fantástica, de uma história de fantasia. Por isso Ig, passa a questionar a própria sanidade. Há o elemento crítico real embutido nesses episódios, o que nos deixa, a princípio, conjecturando se estamos lendo um livro de literatura fantástica ou se tudo tem lá uma explicação psicanalítica. Imaginamos Ig, então, uma pessoa autêntica que, de repente, passou a saber que se tornou algo absurdo, kafkiano. E com Ig vamos conhecendo sua sina. Todos acreditam que ele foi o assassino de Merrin, a garota que ele amava e com quem planejava se casar e ter filhos. Ninguém entende como ele não foi preso e lamentam a falta de provas, misteriosamente, incineradas num incêndio.

Seria tudo coisa da cabeça de Ig? Os próprios relatos que as pessoas fazem dele, confidenciando seus lados negros, seriam apenas invenções da psique do personagem? Seria Ig um personagem confiável ou estamos nos inteirando do relato maluco de um maluco?

Outro incêndio é um dos mistérios que tem a ver com sua metamorfose em demônio, assim como o episódio em que foi salvo do afogamento, após uma aposta entre crianças inconsequentes. O episódio que o liga a Lee, irremediavelmente. O rival que adquire ao tentar pagar a dívida por ter sido salvo por ele. Pelo menos é o que acredita Ig. Mas Lee pretende usá-lo apenas e, num descuido, troca o objeto que ligaria os dois a Merrin por um brinquedo, uma bomba caseira que usa para explodir um carro, num ferro velho, e a explosão deixa sequelas que tornam Lee ainda mais amargo. Afinal, trocou Merrin pela excitação imprudente da adolescência, e o resultado foi o defeito físico duradouro, que ele credita a Ig, com todo o ódio que pode arrancar de dentro de si.

Hill, às vezes, perde um pouquinho a mão, durante a narrativa. Ele explica um pouco demais coisas que ficariam por conta do leitor descobrir e, muitas vezes, essas coisas estão na cara, mesmo. Ele subestima nossa inteligência. Faltou um pouco mais de maturidade por parte dele. Um pouco da experiência do pai. Noutras vezes, as situações são só um tiquinho forçadas demais, como a transformação de Merrin, de namoradinha ideal em ninfomaníaca. Vemos as coisas acontecendo conforme o planejado embora a lógica nos obrigue a não aceitá-las assim tão prontamente. E ele também força um pouco demais o anticatolicismo, de forma quase engajada.

Tem umas situações em que o autor se torna repetitivo e algumas poucas em que embola ligeiramente o meio de campo, tornando-se um tanto impreciso. É que, eu percebi, não sei vocês, se tiverem a intenção de ler o livro, que parece que Joe Hill misturou dois argumentos em um, como se tivesse inicialmente duas noveletas de umas cinquenta, setenta páginas cada, que não dariam dois romances. Um é o conto fantástico de Ig virando diabo, criando chifres e ficando vermelho, saindo por aí ouvindo os pecados das pessoas e incitando algumas delas a praticarem safadezas; outro é o crime cometido um ano antes, para o qual o personagem procura respostas, sendo que todos acreditam que ele próprio é o assassino. Hill então deve ter visto, de alguma forma, a possibilidade de misturar as duas histórias, a fantástica com o thriller policial, e fez uma maçaroca com situações que em certos momentos ficaram imiscíveis. Uma massa de bolo mal batida, um argumento problemático que não teve habilidade suficiente para tornar palatável.

Defeitos, sim, O Pacto os têm. Probleminhas de revisão por parte da Sextante, também. Mas não veja nisso um empecilho para a diversão. Relaxe. Quando começamos a caminhar com o personagem, com seus chifres curvados e pontudos , vamos nos alimentando da boa escrita do autor. Vemos como Ig enfrenta as situações do dia-a-dia em busca de sua vingança. Acompanhamos seu sofrimento por ouvir “a verdade” das pessoas. Sua decepção por descobrir que gente que ele amava e respeitava tem lados podres. O choque por descobri-los e sua trajetória de angústia, desde o começo, quando apenas vivia largado num trailer com Glenda, uma mulher que despreza, vivendo de sua dor pelo assassinato de Merrin, até o enfrentamento com Lee e, além dos chifres, adquirir também um tridente e a pele vermelha (kkkk... juro que acontece isso!). Cada passo além, um pouco mais de carvão na fornalha do mal que ele alimenta dentro de si.

Contudo, terminei o livro sem saber que pacto é esse que dá nome ao título. Não há pacto nenhum na obra! Se o título original em inglês é Horns, que significa cifres (e isso tem tudo a ver com o livro, já que nascem chifres, do nada, na cabeça do personagem Ig, aliás, muito mal explicado isso...), O Pacto, como adaptação para o português, não tem nada a ver. Será que o responsável da editora,pela promoção que fizeram na internet, para dar um nome ao livro aqui no Brasil, leu a obra? Se leu, parece que foi Fausto, de Goethe, ao invés de Horns.

Com relação ao fato de eu considerar “mal explicado” o fato de ter nascido chifres na cabeça de Ig, bem, vejam só: numa noite ele vai, bêbado, ao local onde Merrin morreu, e num acesso de fúria, pisa, chuta e mija em tudo, inclusive em imagens de santos que estavam por ali, e então, só por isso, embora sempre tenha sida um cara legal pacas, nascem-lhe chifres, e esses fazem com que passe a conhecer os pecados e perversões das pessoas. Meu, como assim?

Se era para Jesus ficar fulo da vida por ele ter urinado na imagem de sua mãe, não era para ter dado um castigo bem ferrado? Algo que o prejudicasse? Pois o dom que recebe é bem útil, na verdade. Ele passa a usá-lo para descobrir quem matou Merrin e assim, se vingar das pessoas que o odiavam. E aquele negócio dos gafanhotos cantando, e as cobras que passam a segui-lo, a tal casa da árvore da mente que é uma alucinação dele e de Merrin? E o fato de ter sido salvo por “algo”, não Lee, quando era garoto, quando saltou com o carrinho de supermercado na trilha Evel Knivel... Se era criança, ainda não havia mijado na santa, como se explica isso? E o troço todo de passar a usar um tridente, e ficar vermelho? Na boa, Hill fumou muito baseado e teceu uma colcha de retalhos, ajustando ideias preexistentes que acabaram não se coadunando direitinho. O fato de ter aplicado integralmente o arquétipo físico do diabo no personagem principal é o pior de tudo, já que não tem o mínimo sentido. Se você não abstrair e levar isso um pouco como weird fiction não vai conseguir se ligar com o livro. A leitura vai ser ruim pacas.



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