O Espadachim de Carvão - Affonso Solano






O Espadachim de Carvão (Editora Fantasy-Casa da Palavra, 256 páginas, R$34,90) foi o primeiro livro em formato eletrônico que encarei. Inicialmente o contato com o formato causou algum estranhamento. Aquilo, de segurar um i-Pad na mão e ir virando as folhas digitalmente não me agradou muito, mas não deu uma semana e chegou meu exemplar em formato físico, presente da Fantasy pelo fato do blog ser parceiro. Resolvi então recomeçar a leitura, dando uma pausa para que o estranhamento inicial não influísse na minha imersão no livro, tão necessário para quem quer aproveitar uma boa leitura. Bem, não adiantou muito...

De imediato, o peso diminuiu, a diagramação melhorou e o revirar de páginas agora era real. Sim, agora estava lendo um LIVRO! Então podia começar a minha degustação tão aguardada. De imediato, a tal diagramação é muito mais bonita. Sempre achei que livros digitais eram iguais às versões impressas, mas isso não foi verdade, pelo menos dessa vez. Enquanto a versão eletrônica é texto puro, a versão em papel tem no cabeçalho uma ilustração para cada capítulo, um desenho simples com referência ao título. Uma amenidade, mas é algo que me agrada e mostra bom gosto por parte da edição. Um livro caprichado valoriza o trabalho do escritor e demonstra apreço pelo leitor. Ponto para a Fantasy! 

Outro detalhe é que O Espadachim de Carvão foi o primeiro livro da Fantasy, de um autor nacional, que li. A editora havia chegada então, há poucos meses, com todo o bom estardalhaço que uma editora nova deveria fazer, alardeando os autores e promovendo os livros na mídia. Isso, para um autor nacional é a diferença entre ser ignorado pelos leitores ou ter seu nome comentado e repassado pelo boca a boca tão desejado para um escritor iniciante. De imediato se tornou um sonho de consumo para qualquer escritor nacional de literatura fantástica. Mas isso se deveu a uma estratégia inteligente por parte da editora: nerds! Como iniciava do nada no meio editorial nacional, todos os autores dessa primeira leva já vieram com um rebanho próprio de leitores a tiracolo. Claro que são bons escritores, mas é de se pensar se a Fantasy não estava também de olho dote da noiva.

A Fantasy é uma extensão da Editora Casa da Palavra, pertencente a multinacional Leya, que trouxe ao Brasil o peso do nome de George R. R. Martin, da série Crônicas de Gelo e Fogo, para dar credibilidade aos seus esforços de se consolidar como o principal player de literatura fantástica em solo brasileiro. Certamente foi estratégia do novo selo a publicação, em sequência, de três autores brasileiros com forte imersão na comunidade nerd. Primeiramente Affonso Solano: storyboarder, ilustrador e fundador do site Matando Robôs Gigantes, hoje anexado ao site Jovem Nerd; depois Fábio M. Barreto: autor do livro Filhos do Fim do Mundo (Editora Fantasy, 2013), podcaster, fundador do Conselho Jedi de São Paulo e editor da revista Sci-Fi News, dentre outras coisas; e Leonel Caldela: autor de O Código Élfico (Ed. Fantasy, 2013) e de vários livros no universo de RPG nacional Tormenta. Por último há de se destacar que o próprio editor chefe da Fantasy, até pouco tempo, era Raphael Draccon: autor da trilogia Dragões de Éter (Leya, 2011) e Fios de Prata (Leya, 2012) e, junto com Fábio M. Barreto, podcaster do site sobre cinema Rapaduracast, voltado ao público nerd.

De cara, a Editora Fantasy abocanhou um público fanático, altamente engajado nas redes sociais, e ávido por fazer o tão aclamado boca-a-boca que alavanca vendas. Vamos então falar de seus produtos, em particular o livro de Affonso Solano. A editora veio armada com uma estratégia bem urdida para se firmar junto a um público fiel, mas será que retribui aos seus leitores com a qualidade? Bem, logo de cara, o Espadachim de Carvão contém alguns erros de coesão gramatical, coisa que uma revisão mais cuidadosa, por parte de um profissional de letras, poderia ter resolvido facilmente, deixando o texto redondinho. Isso, por si só, não estraga o bom trabalho realizado, mas como é algo muito simples de ser identificado, já que só se precisa ler o texto para identificar esses pequenos nós, fica a ressalva.

Quanto ao conteúdo, Affonso Solano tem domínio da técnica do bom texto. A maneira como inicia o livro, no meio de uma luta, os flashbacks intercalando a narrativa (talvez tenha abusado um pouco de flashbacks, mas é só uma questão de gosto meu...), nos mostrando o pano de fundo onde a história se insere, as cenas de luta quando Adapak se move pelos círculos Tibaul, tudo contribui para prender o leitor sem cansá-lo. Além disso, há todo um mundo novo a ser explorado (faltou um mapa no livro!). A história se passa no mundo fictício de Kurgala. Dá a impressão que vamos vislumbrar uma fantasia medieval, mas logo vemos que certos elementos afastam o livro dessa categoria, já que a fantasia medieval pressupõe uma narrativa num tempo mais antigo, em que muitos objetos como os retratados no livro (cita-se muito livros de fantasia, por exemplo), e a própria linguagem que acabou sendo usada, não deveriam existir, aproximando o livro mais da ficção científica.

Por uma decisão pessoal do autor, não há metais no livro. As espadas de Adapak são de osso, algumas vezes usam facas de madeira (de madeira???)... É só imaginar você tentando cortar um salaminho com uma faca de madeira... Madeira dá para ser afiada? Não né... “Ah, mas a madeira do livro é diferente”, alguém poderia dizer... Gente, não mexer em coisas conceituais, que já fazem parte do conhecimento coletivo do mundo é questão de bom senso. Senão o autor vai acabar tendo que explicar o que não interessa, o que só vai prejudicar a narrativa. Vira samba do crioulo doido, e aí alguém vai poder dizer que havia uma “luz que escurecia”, ou que “as pessoas altas eram baixinhas” etc. Vira o “Mundo dos Quem”, do escritor norte-americano conhecido como Dr. Seuss... Seria mais plausível se existissem metais e acabou! Algo tão natural que a retirada desses elementos deveria ter uma explicação, mas nada... Simples esquisitice que só atrapalhou, pois tornou a coisa toda mais inverossímil.

A mitologia criada é boa. Deuses, língua, origens, etc. tudo bem argumentado e coerente. Como bom jogador de RPG, Solano sabe criar elementos que agreguem cheiro e cor aos seus deuses e ambientes. Há momentos de verdadeira beleza e as descrições que faz são adequadas ao seu tom que, em algumas circunstancias, é até poético. Há sensibilidade no livro ao ponto que Adapak se mostrar até mesmo um ser angelical, desprovido de maldade ou ambições, ou até sexualidade, criado para ser como é, e não por ter tido pouco contato com o mundo. Não me identifiquei muito com ele por isso. Em O Espadachim de Carvão faltou o principal: a criação de bons personagens. Um rapaz solitário, nascido e criado dentro de uma caverna por seu pai, um “deus” que descobrimos mais tarde, ser uma entidade alienígena. Adapak é desprovido do carisma que poderíamos esperar do herói da história.

Adapak é fisicamente descrito como um homem sem orelhas, sem nariz e com olhos brancos, com a pele totalmente negra como carvão. É uma decisão literária do autor, que não carece de argumentação, simplesmente porque ele quis assim e acabou. Sua aparência é totalmente diferente de qualquer outra raça de Kurgala. Temos uma explicação lá no final do livro a esse respeito, mas é absolutamente arbitrária, nos fazendo engolir que a única coisa que deveríamos saber é que ele é diferente porque sua condição o faz único e ponto. Chego a achar que Solano, em sua ânsia por ser criativo, se apegou demais nisso e se esqueceu de contar uma boa história.

Já os outros personagens são também, todos, muito rasos. Telalec é uma decepção e não consegui ainda visualizar um cara transparente, com três pernas e três braços, isso se formos nos ater apenas ao físico dele, já que as explicações do porquê de sua revolta, assim como a de Barutir, são muito simplórias. Não há nenhum personagem com aquele toque a mais que nos faz lembrar dele depois, diferenciá-los. São lineares, destituídos de personalidades e, quando se mostram mais profundos, são por alguma razão artificial demais, irrelevante. Poderiam e deveriam ser melhor desenvolvidos.

Falando nas descrições físicas dos personagens, Kurgala é povoada por inúmeras raças cujos nomes são muito ruins. Descreve-se a raça, dizendo quantos olhos têm, a cor dos pelos etc., e na cena seguinte já não nos lembramos disso. Que diferença faz? Não gosto de ficar voltando páginas para relembrar as coisas. Isso é contraproducente e atrapalha a fluência da narrativa, ainda mais se for para relembrar se o cara tinha seis ou quatro olhos... O estranhamento causa desinteresse ao leitor, como se algo que fosse para ser simples background tomasse um relevo que não precisaria ter. Lembram-se das cenas em Star Wars onde Han Solo vai a uma taberna para tomar uns gorós, saldar dívidas ou combinar o contrabando de alguma coisa? Sempre há aqueles aliens zanzando de um lado para o outro, simples encheção de linguiça, que contribui só para a ambientação, dar um colorido e tal. Solano perde um pouco a mão nesse quesito, pois a ambientação assume um caráter maior, ficando a narrativa relegada ao segundo plano enquanto ele se diverte descrevendo interminavelmente seus aliens.

Contudo, a história, diferentemente do resto, não é complicada, aliás é o contrário. Até mesmo modesta demais. A repetição da palavra ikibu, toda vez que algum inimigo vê Adapak não tem nada a ver! Não há grandes acontecimentos, não há reviravoltas bem construídas, predomina o cotidiano de Adapak e sua busca por conhecimento. Ele é criado por Enki’ När, uma das entidades Dingiri, que são consideradas deuses em Kurgala. É portanto uma criação única de um deus e poderia ser considerado um “filho de deus”. Esse potencial todo me parece desperdiçado e ficamos vacilando sobre o banal: ele conhece uma garota, perde-a, foge depois que sua casa é atacada, os atacantes continuam a prossegui-lo, ele viaja pelo mar, então descobre quem é o responsável e porquê de estar sendo caçado (e a razão é muito boba). A decepção mesmo fica por conta do final, quando o vilão conta seus motivos. Muito mal pensado!

Não posso dizer que O Espadachim de Carvão é uma decepção, mas não há como dizer que é um grande livro. É mediano, morno, simplório, apenas correto. A escrita de Solano é só apropriada, mas não possui nada que instigue, que entusiasme. Os diálogos são uniformes, destituídos de sagacidade ou verve e os personagens são inermes, planos e simples demais, excetuando-se o próprio Adapak, que agrada em certos momentos, mas nem tanto. Não sempre.

ALBARUS ANDREOS
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