O Trono do Sol: A Magia da Alvorada - S. L. Farrell



O Trono do Sol - A Magia da Alvorada (Leya, 580 páginas, R$ 44,90) é o primeiro livro da série O Ciclo Nessântico, do norte-americano S. L. Farrell (ou Stephen Leigh, outro pseudônimo utilizado pelo autor). Farrell não é nenhum iniciante, embora O Trono do Sol seja o primeiro livro dele publicado no Brasil. É um acadêmico que ensina escrita criativa na Northern Kentucky University, foi indicado e ganhou vários prêmios por sua ficção ao longo dos anos e escreveu várias histórias para o universo compartilhado Wild Cards (editado por George R. R. Martin).  Aliás, muito convenientemente, há uma frase de Martin na capa deste livro: "Uma mistura deliciosa de política, guerra, feitiçaria e religião em um mundo repleto de imaginação. Um lugar fascinante, e que estou ansioso para visitar de novo."

Uau! Eu também, mestre Martin! Só por isso já ficaria tentado a ler o livro, mas... como já sou macaco velho com estes "textos de marketing encomendados" que povoam as capas e contracapas dos livros americanos ("...vencedor do prêmio do Boston Tribune...", "...best seller do New York Times...", "...melhor livro da lista do Chicago Sun...", e blá, blá, blá...), então já fico com um pé atrás. Alguma coisa sempre me diz que propaganda demais para um produto (infelizmente é isso, caro leitor: livro é um produto) é sinal de que a coisa não "se vende sozinha".

E o livro se inicia com um choque de realidade! Já na primeira página percebemos que a obra é impregnada por uma batelada de termos inventados pelo autor (ponto para Farrell, deve ser assim mesmo!), usados por todo o livro, que simplesmente o deixa incompreensível sem um verdadeiro "curso" inicial (retiro o ponto que dei... Afinal, neologismos e a criatividade permeando o vernáculo de um livro devem ter limites, senão tira a atenção do essencial e passa a ser um estorvo)! São pronomes de tratamento, termos, nomes próprios (com uma curiosa inflexão basicamente francesa, mas também italiana/alemã) que não param de aparecer. Logo vemos que há um enorme glossário, mapas, anexos etc. lá no final do livro, e até uma orelha, na contracapa que é destacável (interessante!), uma "tabuinha de referência rápida" e que pode ser usada como marcador de página, porque ali está uma lista das dezenas dos principais neologismos empregados na obra. Imagine então: para você ler vai precisar de um verdadeiro dicionário a tiracolo.

Acontece que eu comecei a ler e estes termos "tremendamente assustadores" são mais inofensivos do que eu imaginava. O próprio contexto da obra já vai explicando os seus significados. Às vezes você simplesmente ignora o troço e continua lendo e a história funciona mesmo assim. Dá a impressão que o contexto acaba digerindo bem a abundância de palavras estranhas (devolvo então o ponto extra à Farrell).

Isso porque o autor parece escrever muito bem! A leitura é bem fluida (até demais, o que invoca uma simplicidade pouco erudita) e quando nos deparamos com um dos "bichos esquisitos", já atinamos do que se trata, ou nem nos importamos mais. Depois de umas vinte ou trinta páginas vemos que a leitura não é complicada, em absoluto, e o marcador de páginas se torna só isso mesmo. Mas, sinceramente, penso que o susto acaba é dando uma primeira impressão ruim. Os neologismos se tornam um chiste, uma esquisitice à parte que contribui negativamente, sim, para a imersão do texto, mas podemos creditar isso tudo ao estilo do autor.

Tirar o leitor do lugar comum, de sua zona de conforto, poderia ser louvável, mas sinceramente, pelo menos neste caso, gostaria de ter sido deixado relaxando na poltrona. O lugar onde Farrell me leva pode até ser bom, mas o vôo não se faz com facilidade. Nomes são algo MUITO importante nos livros. Podem ficar para sempre! Viram ícones, mitos, originam teses de mestrado, em suma, podem fazer parte do imaginário popular pelo menos por uma geração (quiçá, muitas delas): Aquiles, Aladjn, Emma Bovary, Dona Benta, Mickey Mouse, Azambuja, Dart Vader, Frodo, Harry Potter, Edward Cullen...

A história gira basicamente em torno de Nessântico, a cidade-estado onde se passa a trama e de Ana co'Seranta (com a tabuinha de referência você ficará sabendo o que significa este "co", na frente do sobrenome), uma o'téni (ou acólita) dedicada ao deus Cénzi, com poderes mágicos inatos que vão se aperfeiçoando de forma um pouco independente da instrução arcana convencional (o Ilmodo). Acontece que este caminho à margem da instrução oficial, é terminantemente proibido pela fé concénziana. Ana é muito bem delineada no início, vai sendo saturada por uma carga grande de aspectos psicológicos, muito bem urdidos até certo ponto, com o drama de ter a mãe doente, os abusos por parte do pai, a preocupação em controlar seus poderes (e o dilema de não poder usá-los para salvar a mãe, o que significaria ir contra a Divolonté – mais ou menos algo como "a vontade de deus").

Alguns outros personagens são apresentados, Dhosti ca'Millac, o archigos (o arqui-sacerdote) da fé em Cénzi; a matriarca governante de Nessâninco (ou kraljika), Marguerite, a "Genere'a Pace"; o filho e príncipe herdeiro, Justi; o mendigo Mahri; a mãe (ou matarh) de Ana, A(l)bini (não sei se é Albini ou Abini, já que os dois nomes, lamentavelmente, foram usados para o mesmo personagem) além de outros. As motivações e importância dramática de alguns deles mostram-se um tanto mal elaboradas, evidenciando certa falta de habilidade do autor; atos e decisões ficam um pouco no ar também, não sendo muito embasados e até gratuitos em algumas passagens. Há clichês que poderiam não ser apenas isso nas mãos de um outro escritor mais capaz minucioso.

Ao chegar ao final do livro não consegui uma boa imersão na leitura com os nomes próprios e os pronomes de tratamento usados. Como disse, nomes são muito importantes nos livros de fantasia, imprimem caráter aos personagens, dão um certo "tom"  e muito do espírito fantástico da narrativa. Em O Trono do Sol eles são muito esquisitos e não consegui me divertir, realmente, devido a essa implicância que toda hora me atormentava. Mas isso é coisa minha, Ok! Talvez você não ligue.

A história titubeia muito e no evento onde a rainha (kraljika) Marguerite comemoraria seu jubileu, eu até pensei em abandonar a leitura. Até ali achei a história muito anal banal. Os incontáveis erros de revisão da obra também reduziram em muito minha atenção e provocaram muitos desconfortos: a Editora Leya chegou ao ponto de errar os nomes de vários personagens [não foi só a mãe de Ana, A(l)bini] diversas vezes, incluindo a principal, Ana co’Seranta, que apareceu também como Anna, em mais de uma oportunidade. Há mesmo construções bem mal feitas que abusam da semântica e erram tempos verbais (que Cénzi os ajude!).
   
Com o andar da carruagem a narrativa melhorou bastante, mas não dá para deixar de notar a superficialidade de Allesandra, a filha de Jan ca’Vörl, que embora seja ainda uma menina fica se metendo (pasmem!) nos assuntos militares do pai (e este fica num interminável afagar dos cabelos da pestinha prodígio); Marhi, o mendigo, hora salva, hora trai Ana e Karl, com uma desculpa muito mal ajambrada de que “era a única forma de conseguir ajudá-los" (para mim foi o autor mesmo que não conseguiu fazer a coisa soar melhor) e as motivações do mendigo Mahri permanecem um mistério que, pelo menos em parte, deveriam ter sido esclarecidas pelo autor. Simplesmente não entendi como Ana consegue descobrir o envolvimento dele no crime, na noite do jubileu; o enviado Karl ci’Vliomani parece um cachorrinho de Ana e não se entende afinal porque está na história a não ser para virar o par romântico da mocinha. Os dramas e os arredondamentos psicológicos da própria Ana, no início da obra, não influem muito no seu desfile pelas quinhentas e tantas páginas do livro. Ela, inicialmente, até tem certa repulsa pelo contato físico com os homens, mas fica nisso, sem neuroses mais profundas, raiva ou demonstrações de instabilidade que, imagino, deveria acompanhar o pacote e agregar interesse à narrativa.
   
Num trecho absolutamente bizarro, próximo ao final, Ana, para provar que a arte dos numetodos (um tipo de protestantes à religião cenziana, que parecem ser mais voltados à ciência que à fé) pode ser usada pelos ténis-guerreiros contra as forças invasoras do hïrzg (uma espécie de Kaiser de Firenczia, uma outra cidade estado), simplesmente ordena que um deles atire uma bola de fogo sobre ela. O episódio termina com um monte de corpos de seus colegas ténis carbonizados e ela sobrevive, junto com Karl, e isso é visto como um sucesso e há risos e aplausos... Como assim?! Um monte de gente morre só para a moça se mostrar e fica tudo bem???? Ficou simplesmente ridículo!

Mais adiante, depois de incontáveis perseguições, os numetodos, após serem caçados e hostilizados o livro inteiro, simplesmente resolvem virar treinadores dos ténis (os acólitos e sacerdotes) de Cénzi e os ajudam contra os invasores, assim, sem mais nem menos! Se o fato deles estarem na cidade também e que seriam caçados e mais uma vez chacinados é a razão, então poderia ficar mais palatável se o autor evidenciasse os atritos e o mal estar reinante por causa dessa união indesejada. Ficou muuuito forçado. Ana, embora seja uma crente sem qualquer outra característica prática, de repente começa a dar pitacos estratégicos nos planos de defesa da cidade de Nessântico, sitiada pelos firenczianos, ao próprio comandante das forças, Sergei ca'Rudka (um pouco menos do que Allesandra faz, mas mesmo assim é um disparate).

E mais uma vez me pergunto: se qualidade parece ser o que impede autores de fantasia nacionais de serem publicados e festejados pelas editoras daqui, não entendo como um livro com a qualidade de O Trono do Sol pode. De modo geral, não desgostei totalmente da leitura, mas sem dúvida pensarei duas vezes antes e ler o segundo volume da série. Ao contrário de mestre George R. R. Martin, em sua declaração estampada na capa do livro, eu não estou ansioso para visitar as páginas de S. L. Farrell de novo. Como eu disse: propaganda demais para um produto é sinal de que a coisa não "se vende sozinha".

Nessantico Cycle:
1. O Trono do Sol: A Magia da Alvorada
2. A Magic of Nightfall
3. A Magic of Dawn 


ALBARUS ANDREOS
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