Baltimore e o Vampiro - Mike Mignola e Christopher Golden




Edgar Allan Poe, um dos maiores escritores de terror de todos os tempos, morreu em Baltimore, em 7 de outubro de 1849. Não sei o que há em Baltimore, cidade americana do estado de Maryland (e onde se passa o desenho animado Futurama da Fox, dos mesmos autores de Os Simpsons), nunca fui até lá. Talvez seja uma cidade linda, talvez seja uma cidade linda e soturna... Talvez nada disso. Baltimore e o Vampiro, de Mike Mignola e Christopher Golden (Amarilys, 304 páginas, R$ 50,00), seja uma homenagem dos autores ao poeta e escritor que inventou o conto policial e o conto de terror moderno e o primeiro escritor americano conhecido a tentar ganhar a vida através da literatura.  The Masque of the Red Death é um conto de Poe, datado de 1842 que curiosamente cita primeiro a Peste Vermelha... Vamos tentar atar essas pontas.

O que é certo é que o livro ilustrado soturnamente pelo desenhista Mike Mignola, descreve o encontro de três desconhecidos, Demetrius Aischros, o Dr. Lemuel Rose e Thomas Childress, numa cidade decadente após a Primeira Guerra Mundial, numa Europa ainda assolada pela peste. Todos os três foram convidados para estar ali, naquele dia e naquele horário, por uma outra pessoa conhecida dos três. Sentados à mesa de uma taberna imunda, cada um deles revela suas ligações com esse amigo comum, Lorde Baltimore, e estas revelações constroem a história que vamos lendo.

Não preciso nem dizer que a partir dessa premissa inicial temos ouro em forma de enredo. Deu para notar como a situação bem construída do início é de dar água na boca para continuarmos lendo o livro? ESCRITORES DE LITERATURA FANTÁSTICA, APRENDAM! O livro é muito bem escrito, mas não se trata exatamente de um romance, como somos levados a crer no princípio. Como cada um dos três estranhos sabe só um pouco sobre a vida de Lorde Baltimore, estes contos isolados vão se unindo para descobrirmos, junto com eles próprios, a história que veremos no livro. Quem já leu a Ilha do Tesouro, de Stevenson, já viu isso antes. Mas lá vai:

Na guerra, em pleno campo de trincheiras do front nas Ardenas, o capitão Henry Baltimore e sua tropa são trucidados pelo fogo alemão. Todos morrem menos ele que, completamente estropiado, perde uma perna e por pouco não sucumbe também. Enquanto tenta sobreviver na lama, cheio de corpos sobre si, tem uma terrível visão que vem do céu: vampiros vem se alimentar dos cadáveres e moribundos.  Os vampiros de Golden e Mignola têm muito mais da tradição popular do oeste europeu do que o vampiro moderno. São seres abjetos comedores de cadáveres, em sua maior parte. Mas voltando, Baltimore, a se ver sob os dentes de uma das feras, saca uma baioneta e ataca o rosto do monstro, salvando-se. Tudo é descrito com doses cavalares de dor, cheiros pútridos e as mais diversas misérias que uma situação limite como essa pode proporcionar.

Por sorte (e aqui vemos com não muita surpresa o ritmo marcadamente de HQ que o roteiro toma) ele é resgatado e no hospital acaba sendo visitado pelo vampiro, agora na forma de homem, que lhe revela que, por seu ato inusitado, uma maldição tomará o mundo e ele se vingará de Baltimore. Essa maldição é a peste vermelha (alusão ao conto de Poe?) que mata e transforma outros humanos em vampiros.

Não gostei disso. Não tem muito sentido, contudo é como descreve o doutor Rose (que cuidou de Baltimore no hospital e que agora está defronte dos outros dois homens na mesa da taberna); aí está o início da maldição, compartilhado com os demais.

Como a premissa inicial já sugere (três homens contando a história em turnos e elas não são exatamente sequenciais, mas complementares, umas às outras), as histórias são fragmentadas, e explicam porque acabam por acreditar, com testemunhos pessoais, em tão fantásticas alusões ao macabro. São vívidas e as lembranças deles são cheias de terror e desolação e temos uma linha central a qual elas vão se apoiando. As narrativas enfocam momentos chave e conhecemos mais de Baltimore. Não é realmente uma boa maneira de imergirmos no texto, pois a falta de linearidade causa certo desconforto e nunca realmente sentimos a narrativa fluir.

Embora a escrita seja de primeira, perdemos muito tempo com rodeios e parece que nunca chegamos ao Baltimore e o Vampiro, título da obra. Por isso, relaxe. Aproveite os mestres escrevendo, veja como se ambienta (genialmente) uma trama bem urdida. Não vá com tanta sede ao pote e imagine-se como um quarto companheiro sentado à mesa com um copo de cerveja choca diante de si e deixe seus pêlos arrepiarem.

Os desenhos de Mike Mignola sempre me incomodaram quando lia gibis de super-heróis, me incomodavam porque eu não considero o traço dele adequado ao tema, elegante ou preciso como John Byrne, Sal Buscena ou Neal Adams; ao contrário, é um desenho que vê principalmente o feio e o torpe, o que, por outro lado, se adéqua perfeitamente ao livro; sempre em preto e branco, fotografando momentos, são flashs de fachadas de prédios descorados, casebres tomados pelo mato, lápides tortas e rostos decrépitos, nunca o assunto principal de cada narrativa contada pelos três homens. São olhadelas de canto de olho enquanto nos concentramos no mote narrativo. É estranho ler um livro ilustrado, confesso. Parece nos remeter a algo feito para adolescentes criançolas, mas o efeito real é de arte! Lembre-se, estamos nas mãos de um cara como Mignola, que deu vida a um dos personagens mais mal encarados das HQs: Hellboy! E vai saber agregar conteúdo a uma história assim, lá longe!

Gostei bastante do livro, sinistro e pesado, mas a fragmentação realmente me incomodou por não termos um enredo que se resolve dinamicamente. Há também um momento típico de gibi no final, quando os três companheiros de sina são convidados a ir ao apartamento de um outro personagem e lá encaram o vilãozão e ele fica com aquele papo interminável antes de simplesmente dilacerar e estripar de vez. Sabe, aquela coisa de Lex Luthor explicando pro Superman, já caído, o mecanismo que irá tirar sua vida com uma pedra verde e brilhante, e HAHAHAHAHAAA.... É realmente bem caricato e perdemos um pouco do sinistro e dramático. Vilão fazendo discurso final antes de tudo dar errado e o herói se livrar das correntes para socar sua cara feia pela centésima vez não dá, né.

A diagramação e tradução do livro estão impecáveis, de ótima qualidade. Há páginas pretas separando as partes do livro e cada parte vem em capítulos. A cada uma das páginas pretas temos um trecho do conto O Soldadinho de Chumbo, de Andersen. Há um esforço deliberado dos autores em fazer uma analogia entre o conto de fadas e as partes do livro. Tenta-se até uma correspondência entre os finais dos dois textos que não ficou nada boa. Baltimore e o Vampiro poderia ter ficado muito bem sem errar esse alvo.

De qualquer forma, recomendo. É um tipo de leitura que devemos nos deixar emergir para aproveitarmos tudo. Não há romance, não há caras bonitinhos, não há heróis infalíveis, não há segunda chance. Deixe toda a esperança para trás antes de cruzar esta porta, caro leitor... E me diga o que há do outro lado, se sobreviver!

ALBARUS ANDREOS


PhotobucketRSS/Feed - Receba automaticamente todos os artigos deste blog. Clique aqui para assinar nosso feed. O serviço é totalmente gratuito.